quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A REVOLUÇÃO PERMANENTE E O “ORIENTE MÉDIO”



            Entre 1905 e 1906 o jovem revolucionário Leon Trotsky, sob as impressões da  Revolução de 1905, formulou as bases de sua conhecida Teoria da Revolução Permanente. Nesse período, o pensamento hegemônico no marxismo russo se apegava a ideia de que a Rússia deveria primeiramente passar por uma revolução burguesa, consolidar o Estado democrático burguês, para só então pensar em uma revolução socialista. Essa ideia tinha implicações bastante práticas, uma vez que se desdobrava no apoio e na submissão política dos socialistas frente aos liberais.
            A partir de uma análise da formação histórica e econômica do Império Russo, Trotsky se colocou diametralmente contra esse paradigma. Para ele, a débil burguesia russa nasceu e se desenvolveu sob o patrocínio da autocracia czarista e dessa forma, não constituía uma força revolucionária tal qual a burguesia francesa, por exemplo. Por outro lado, apesar de o proletariado russo constituir uma minoria em relação à população absoluta, a concentração industrial e o porte das indústrias, possibilitou a formação de um proletariado altamente combativo e revolucionário. 
            Assim, para Trotsky a Rússia não precisaria necessariamente passar pelo período de consolidação burguesa, como pregavam os mencheviques, por exemplo. Não precisaria e não poderia, uma vez que a burguesia russa seria “por natureza” reacionária. Trotsky rompeu com o menchevismo justamente nesse ponto, ou seja, ao propor que a revolução na Rússia deveria ser permanente, passando da fase burguesa ininterruptamente para  a fase socialista. Dessa forma, mesmo as “conquistas tipicamente burguesas”, como liberdades civis e políticas, deveriam ser levadas sob a liderança do proletariado. Uma vez no poder, esse proletariado não trabalharia no sentido de manter sua própria exploração, ao contrário, iniciaria a fase socialista da revolução expropriando os meios de produção e colocando-os sob seu controle.
            As atuais revoluções no Oriente Médio[1], que ficaram conhecidas como a “Primavera Árabe”, revelam um forte descontentamento com regimes políticos autoritários, opressores, que por muito tempo conseguiram conter pela força das armas os anseios populares. Na Síria uma verdadeira Guerra Civil colocou o povo e diversas lideranças tribais em armas contra o regime de Bashar al-Assad. Na Líbia o descontentamento popular culminou na derrubada do governo do fossilizado Khadafi. No Irã, apesar de contida pela repressão, a insatisfação não é menor e isso ficou evidente na última eleição de Mahmoud Ahmadinejad. Iêmen, Tunísia... A revolução bate as portas. Mas o caso mais emblemático parece ser o Egípcio.
            No Egito, apesar da derrubada do presidente Hosni Mubarak, as massas não abandonaram “a praça”, mostrando claramente sua insatisfação com as reformas na superfície política, com o poder que ainda desfruta o exército e com as condições sociais que esmagam o povo. O atual governo da Irmandade Muçulmana, presidido por Mohamed Morsi, tenta calar com a força das baionetas os gritos de “pão, liberdade e justiça social” que ecoa nas ruas. Nessa perspectiva, o Egito é um forte indicativo de que a  luta do “povo árabe” por democracia é apenas a ponta do iceberg. A insatisfação é bem mais profunda e a “Primavera árabe” talvez não se detenha em sua fase de construção da democracia burguesa.
            Líbia, Síria, Egito Irã, Iêmen, enfim, o que aqui chamamos de Oriente Médio, são países caracterizados por economias extremamente dependentes do petróleo e com um proletariado relativamente especializado. Contam também, esses países, com importantes concentrações urbanas. A insatisfação com os regimes autoritários é agravada, ou mesmo despertada, pela péssima divisão da renda do petróleo. Nesse sentido, as contradições sociais parecem profundas demais e talvez não se resolvam com doses homeopáticas de liberdade política. Assim, estaria o “Oriente Médio” condenado a seguir o caminho das democracias ocidentais? A revolução política será inexoravelmente contida na democracia burguesa? Ou ao contrário, o desenvolvimento econômico e social dessa região pode abrir a possibilidade para uma nova e mais profunda forma de democracia, a democracia social?
   Essas perguntas só o tempo responderá e se por um lado o porvir ainda não está escrito e comporta uma série de caminhos e possibilidades, uma lição aprendemos com a História: as revoluções são eventos “abertos”, que tornam inevitável o que antes parecia impossível.

Saymon de Oliveira Justo



[1] O conceito “Oriente Médio” utilizado aqui não é um conceito geográfico, como fica evidente. Sob esse termo refiro-me aos países tanto da Península Arábica como aos do norte da África. O que justifica tal generalização são algumas importantes semelhanças, como por exemplo, o fato de esses países sustentarem suas economias com a exploração do petróleo e seus derivados; a péssima distribuição da renda desse recurso natural; governos autoritários e no plano cultural o islamismo.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

DEUS E O DIABO DA TERRA DO CAMARADA STALIN

                                                                                          Manuscritos não ardem”



            Coisas estranhas acontecem na Moscou da década de 1930. O presidente da Massolit[1], Aleksándrovitch Berlioz, tem sua cabeça cortada em um atropelamento nada convencional, isso pouco antes de um estranho tipo ter lhe descrito como morreria. Mulheres recebem sapatos e roupas que desaparecem subitamente deixando-as nuas em plena rua. Um pavoroso gato preto bebe vodka, anda sobre duas patas e provoca terror no apartamento número 50 da Rua Sadôvaia. Dinheiro se transforma em rótulos de bebidas, poetas enlouquecem, pessoas desaparecem... É o diabo, o satanás em carne e osso, ou seja lá do que ele é feito, que resolve visitar a Moscou dos tempos de Stalin. E não está sozinho, vem com seu assustador, mas por vezes cômico séquito.
            Em “O Mestre e Margarida” o escritor soviético Mikhail Bulgákov coloca tipos sociais bastante característicos da Moscou stalinista em um mundo fantástico, que para os leitores latino-americanos pode inclusive lembrar a Macondo de “Cem anos de solidão”. O romance demorou cerca de dez anos para ser finalizado e Bulgákov chegou inclusive a queimar o manuscrito original em razão da perseguição que sofria pelo regime soviético. Finalizado em 1940, semanas antes da morte do autor, “O Mestre e Margarida” ficou restrito apenas ao estreito e íntimo círculo de conhecidos de Bulgákov, pois seria impensável sua publicação naqueles idos. Sobrevivendo há duas décadas escondida, essa obra-prima de Mikhail Bulgákov foi publicada apenas na década de 1960 e mesmo assim, com cortes da censura.
            O Mestre, a que faz referência o título, é um escritor perseguido e colocado no ostracismo pela imprensa e pela crítica soviética. Ao ter seu livro sobre Pôncio Pilatos recusado pela editora e se tornar alvo de perseguição, o Mestre entra em estado de profunda depressão e se interna em uma clínica psiquiátrica. Margarida é a esposa de um rico homem, porém, se apaixona pelo Mestre e por sua obra, dedicando-lhe toda sua existência, inclusive, entregando sua alma ao diabo para salvá-lo. Em razão desses elementos o romance de Bulgákov inevitavelmente traz a mente o Fausto de Goethe, porém, a história do Mestre e de Margarida é apenas uma entre tantas outras que se cruzam e intercruzam ao longo da obra. Inclusive, a amargura do Procurador Pôncio Pilatos por conta da crucificação é parte central do livro.
            Mais que o romance entre Margarida e o Mestre ou o humor negro das situações inusitadas, a obra de Bulgákov é uma crítica contundente e refinada ao regime stalinista. Aliás, o Mestre parece ser o próprio autor colocando-se como personagem, pois tanto o Mestre como Bulgákov queimaram seus próprios manuscritos por conta da perseguição política. As pessoas que satanás e seus funcionários fazem desaparecer sem deixar rastro ou memória lembram muito os chamados “inimigos do povo”, que simplesmente “deixavam de existir no meio da noite”. Os documentos magicamente modificados, que aparecem, desaparecem e reaparecem, logo trazem a mente o falseamento da história pelo regime soviético.
            Bulgákov morreu em 1940, porém, se não tivesse morrido, provavelmente teria morrido. A frase parece estranha e confusa, mas expressa bem o destino que facilmente o escritor teria naqueles anos de intensa perseguição política que precederam a Segunda Guerra. O próprio clima de “realismo fantástico” que permeia “O Mestre e Margarida”, por si só, mesmo que fosse o mais inocente dos romances, já constituiria uma afronta ao “Realismo  Socialista” que o governo tentava impor à arte. Além disso, Bulgákov coloca a todo o momento  algumas questões incomodas, como por exemplo, as lojas e restaurantes especiais, reservados apenas a alguns burocratas ou apoiadores do regime; a briga por vaga nos apartamentos coletivos; o “denuncismo”, que propiciava uma espécie de “Estado policial”, onde cada cidadão poderia estar sendo vigiado pelo vizinho, que na primeira oportunidade denunciaria o colega cobiçando sua moradia ou cargo. Enfim, se a obra tivesse sido publicada provavelmente não seria do agradado do camarada Stalin.
            Aquele que conhece um pouco da história soviética vai se deliciar com a sátira do autor aos aspectos e tipos sociais específicos da vida moscovita na década de 1930. Porém, apesar do viés político que “O Mestre e Margarida” se permite ser lido, ele não se resume a isso. É uma obra-prima, construído com uma prosa fácil, humor sutil e cativante. Assim, mesmo um leitor pouco familiarizado com os aspectos políticos, vai se divertir com as peripécias de satanás e seus funcionários a solta em uma grande capital em pleno século XX.

Saymon de Oliveira Justo



[1] Antiga Associação literária de Moscou.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Simonov e a volta do “Eu”

A Revolução de Outubro de 1917 transformou praticamente todas as esferas da sociedade russa. A propriedade privada foi violentamente atacada; a economia passou a obedecer a uma nova lógica; as antigas relações sociais foram subvertidas; o que era certo tornou-se errado e vice versa; o bom transformou-se em ruim... E nesse novo mundo que estava sendo criado, a produção artística também não escapou incólume.
Já nos primeiros anos da Revolução muitos bolcheviques renegavam todo e qualquer resquício do passado imperial. Como Comissário da Guerra, Trotsky travou uma encarniçada luta no seio do próprio Partido contra seus camaradas que queriam expurgar do Exército Vermelho os oficiais formados nas academias do Czar. O mesmo Comissário perdeu boa parte do seu capital político em rusgas com setores do bolchevismo que pretendiam eliminar sumariamente toda “arte burguesa” e não menos sumariamente, forjar uma suposta “arte proletária”.
Conforme Stalin e seus partidários acendiam no Partido e no governo soviético, essa perspectiva de banir todas as “conquistas” das antigas gerações  como velharias burguesas ganhou força. Se no final da década de 1920 a coletivização forçada do campo e a criação dos Kolkhoz (fazendas coletivas) representam a insanidade do regime em eliminar a pequena agricultura individual, anos antes os Kommunalkas objetivavam também o fim do modelo burguês de convivência. Os Kommunalkas eram apartamentos coletivos, onde várias famílias compartilhavam cozinha, sala, banheiro, enfim, constituía uma tentativa de eliminar o individualismo e a privacidade familiar, valores tidos como nocivos à nova sociedade.
A arte proletária também deveria banir o individualismo, assim, os novos poetas eram “incentivados” a louvarem o amor ao Partido, ao camarada Stalin e ao coletivismo. O antigo lirismo do homem por sua amada, ou vice-versa, passa a ser visto em princípio como fraqueza pequeno-burguesa e posteriormente como uma “arte inimiga” da nova sociedade e seus valores, podendo mesmo o artista ser enquadrado na categoria penal de “inimigo do povo”. Nesse contexto o regime soviético patrocinava  cineastas, pintores, escultores, romancistas e poetas, transformando-os em soldados da nova cultura proletária, ou melhor, panfletistas do regime soviético.
Konstantin Simonov nasceu no seio da antiga intelligentsia russa e para apagar essa “mácula” em seu passado e ser aceito na sociedade soviética, ainda jovem Simonov rejeitou uma possível formação acadêmica e se matriculou em uma Escola de Aprendizes de Fábrica, as FZU, onde aprendeu o ofício de torneiro. Estudando durante o dia, Simonov trabalhava a noite montando cartuchos para rifles  e a confiar em suas memórias, realmente se empolgou com o “espírito da Revolução”. Com a prisão do padrasto, Simonov trabalhou ainda mais para construir e fortalecer uma identidade proletária, pois só assim poderia camuflar suas origens burguesas e não terminar em algum preso em algum Gulag como inimigo do povo.
Na década de 1930 estava sendo construído o Canal do Mar Branco, uma obra que ligaria este ao Mar Báltico. Nessa obra foi empregada literalmente mão de obra dos prisioneiros dos gulags, que morreram aos milhares escavando o canal com as próprias mãos. Foi por esses tempos que Simonov escreveu alguns poemas sobre o caráter redentor do trabalho na vida dos prisioneiros políticos. Não se sabe exatamente como, mas esses poemas foram parar nas mãos dos agentes da OGPU (polícia política) e esse foi o início da carreira de Simonov como “poeta proletário”.
Konstantin Simonov foi um típico poeta a serviço do Partido e do Estado soviético. Recebia incentivos, regalias e orientações para se enquadras no Realismo Socialista e promover as conquistas e façanhas do regime. Tido por muitos como um poeta medíocre, Simonov conseguiu sobreviver e se destacar no mundo soviético em boa parte pelos serviços líricos que prestava ao regime. Com a invasão da União Soviética pela Alemanha nazista em 1941, Konstantin Simonov foi mandado ao front como uma espécie de correspondente de guerra e além de trabalhar contra o derrotismo, deveria escrever para levantar o moral dos “soldados vermelhos”. Apaixonado pela atriz de cinema Valentina Serova, Simonov escreveu “Espere por Mim”, talvez seu mais belo poema.
Mas a verdadeira importância de “Espere por Mim” é o rompimento que representa com o “Realismo Socialista”, trazendo novamente à dignidade àquele amor romântico entre duas pessoas. Soldados compilavam o poema e repassavam aos camaradas; recitavam nas trincheiras e mandavam em cartas às suas amadas. Finalmente Simonov se tornava Poeta, sentindo as dores do homem comum, traduzindo-as em poesia e a elevando à dignidade lírica.


“Espero por Mim” foi o primeiro grande sinal essa mudança estética. O poema conjugava um mundo privado de relacionamentos íntimos independentes do Estado. Como foi escrito a partir dos sentimentos dos sentimentos de uma pessoa, tornou-se necessário para milhões. Com o barulho da batalha em todas as partes, com oficiais que gritavam e oficiais que latiam, o povo precisava da poesia para que ela tocasse suas emoções; o povo ansiava por palavras para manifestar a tristeza, a raiva, o ódio, o medo e a esperança que o agitavam. “Seus poemas vivem em nossos sentimentos”, escreveu um grupo de soldados para Simonov em 1945.[1] 

Por: Saymon de Oliveira Justo 

ESPERE POR MIM


Espere por mim, que eu voltarei,
Mas tens de esperar muito
Espere quando a chuva amarela
Tristeza trouxer,
Espere quando a neve vier,
Espere quando fizer calor,
Espere quando os outros não esperarem,
Esquecidos do passado.
Espere, quando dos países distantes
Cartas não chegarem,
Espere, quando até se cansarem
Aqueles que juntos esperam.

Espere por mim, que eu voltarei,
Não perdoes àqueles
Que encontram palavras para dizer
Que é tempo de esquecer.
E se crêem, filho e mãe,
Que já não vivo,
Se os meus amigos, cansados de esperar,
Se sentam à lareira
E bebem vinho amargo
Para me recordarem…
Espere. E com eles
Não te apresses a beber.

Espere por mim, que eu voltarei
A despeito da morte.
Quem não me esperou,
Que diga: ‘Teve sorte!’
Não compreendem os que não esperavam
Como no meio do fogo
A tua espera
Me salvou.
Como sobrevivi, saberemos
Só tu e eu, -
É porque me soubeste esperar
Como ninguém mais

Konstantin Simnov



[1] FIGES, Orlando. Sussurros. A vida privada na Rússia de Stalin. Editora Record. Rio de Janeiro. 2012. P. 463.

sábado, 21 de julho de 2012

DEMASIADO HUMANOS?

Dud’s Tozinsky consegue quebrar uma castanha com martelo e saborear o fruto em companhia do seu famélico cachorro Fido. E daí? Um chimpanzé da bunda dourada consegue a mesma façanha e além do uso da ferramenta, esse animal “fabrica” sua própria ferramenta, pois ele modifica galhos de árvore para enfiar no cupinzeiro e capturar seu banquete. Saimov consegue empurrar uma torre na cara do rei do Mauricinho. E daí? Um primata não humano consegue encaixar cubos em seus devidos lugares, coisa que Saimov só faz com muita dificuldade. Mauricinho aprendeu em seu meio cultural a sujar o calçadão da praça com os restos do seu cigarro. E daí? Uma população de Bonobos desenvolveu um engenhoso sistema para separar o trigo da areia jogando tudo na água...O que flutua é trigo. Essa prática continuou sendo ensinada dentro dessa população mesmo quando desapareceu a necessidade, tornando-se assim, uma espécie de ritual. Nesse sentido, a partir um conceito mais amplo de cultura, podemos dizer que esses primatas também a possuem, pois essa prática é ensinada dentro do grupo, e não “herdada geneticamente”.
É com base nesses argumentos, claro que expostos de forma mais elegante do que o fiz, que o historiador Felipe Fernández-Armesto questiona os argumentos que até hoje tínhamos como certos para nossa auto-distinção em relação aos outros animais. Claro que existem diferenças óbvias e assim, é impossível confundir nosso amigo Xandão com uma capivara, por exemplo, exceto talvez quando disputam uma partida de xadrez. Porém, para Armesto os humanos não ocupam um lugar especial na evolução, ao contrário, são apenas um dos tantos galhos da árvore evolutiva, uma entre tantas possibilidades que ficaram pelo caminho ou tomaram outro rumo.
Em “Então você pensa que é humano?” o professor Armesto desconstrói boa parte da argumentação que fundamenta os humanos como “essencialmente” diferentes, a parte, das outras espécies. O autor chega mesmo a sugerir que outros primatas deveriam ser classificados no gênero “homo”. Para tanto, Felipe Fernándes-Armesto se fundamente em recentes estudos sobre os primatas, que revelam comportamentos bastante similares aos nossos, como por exemplo, solidariedade, tristeza, capacidade de prever efeitos, certos comportamentos que podem ser enquadrados como culturais, além da habilidade para utilizar e fabricar ferramentas.

Em janeiro de 2003, reportagens na imprensa trouxeram boas notícias para os orangotangos. Segundo a revista Science, eles são “quase humanos”. Alguns deles “usam guardanapos quando comem” e “beijam-se para dar boa noite”. Alguns “usam folhas com luvas enquanto manuseiam vegetação espinhenta” (...). Ainda mais surpreendente, eles desenvolvem uma cultura: como as sociedades humanas, os grupos de orangotangos desenvolvem modos distintos de se comportar uns com os outros. Os seus jogos variam de lugar para lugar. Em Bornéu, brincam derrubando árvores mortas, que cavalgam enquanto caem e abandonam pouco antes do impacto. Esse jogo, entretanto, é desconhecido dos orangotangos de Sumatra. (p. 59)


Além do embasamento científico para questionar nossa noção “tradicional” de humanidade, o professor Armesto, fundamentado em pesquisas arqueológicas, mostra como é sustentável a idéia de que em períodos ou sociedades pré-agrícolas, onde os humanos praticamente não tinham controle sobre a natureza, nossa espécie se percebia como uma entre tantas e nada mais que isso. Fósseis de humanos enterrados ao lado de animais, ou de animais enterrados com o que seriam adornos de reverência, sugeririam uma noção de igualdade entre espécies, ainda mais quando éramos tão frágeis frente às garras, presas e velocidade dos felinos, por exemplo.
Essa percepção dos humanos como pertencentes à mesma “esfera” de outras espécies teria perpassado as sociedades pré-agrícolas, tanto é assim que observamos o culto aos animais ou o antropozoomorfismo em sociedades como a egípcia, por exemplo. O caráter histórico dessa noção que temos de nós mesmo em relação aos outros animais é fundamentado por Felipe Fernández-Armesto de uma forma bastante interessante. Além dos estudos arqueológicos, o historiador traz uma série de documentos mostrando como animais eram julgados com os mesmos critérios que se julgariam os humanos. Gafanhotos acusados de provocarem fome, cães julgados por assassinato na Europa Medieval, enfim, uma série de documentos evidenciariam como essa noção antropocentrista é definida no tempo e no espaço e mesmo quando foi hegemônica, não permaneceu como única.
Em tempos onde nosso pseudo-poder sobre a natureza atinge proporções titânicas; em um período em que temos a capacidade técnica para eliminar boa parte da vida sobre a Terra; em dias que nos comportamos como se todos os recursos naturais e todas as espécies sobre o planeta estivessem aqui com a única finalidade de nos servir...As reflexões propostas pelo professor Armesto se tornam de grande valor. A permanência de nossa civilização e talvez até de nossa espécie, dependem inexoravelmente das relações que teremos com toda forma de vida e não vida no planeta, de nossa percepção sobre nós mesmos nessa “pequena bola de terra molhada flutuando no espaço”.

Saymon

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Imprensa e democracia


Duas décadas de ditadura militar deixaram marcas indeléveis na sociedade brasileira e mesmo com a democracia formal já restabelecida há mais de vinte anos, os traumas da censura e das restrições às liberdades civis ainda assombram as gerações que viveram naqueles idos. Bom mesmo que assombrem, e que as novas gerações tomem em suas mãos a responsabilidade de nunca mais permitirem algo parecido como o regime instaurado em 1964. A liberdade, a crítica e a democracia são condições inclusive para pensarmos o socialismo no século XXI.
Porém, esse trauma causado pela noite que caiu sobre o Brasil após a deposição do presidente João Goulart, muitas vezes serve encobrir com o manto do “democratismo” grupos e práticas nada democráticos. Em nossos dias, qualquer referência que se faça no sentido de regulamentar ou mesmo responsabilizar setores da imprensa por suas práticas, soa como verdadeira heresia e prontamente os cavaleiros da pseudo-liberdade desembainham suas espadas.
A imprensa deve sim ser livre e desfrutar de toda liberdade, entretanto, como qualquer órgão público ou privado, precisa responder por suas práticas, se responsabilizar perante a sociedade, uma vez que está inserida até as entranhas nessa, não pairando angelicalmente e imparcialmente sobre o resto dos simples mortais. Tendo em conta, sobretudo, os grandes conglomerados de televisão, jornal, rádio e revista, temos que ponderar que tais veículos são empresas privadas, nas mãos de grupos sociais bastante específicos da elite brasileira e que dessa forma, muitas vezes possuem interesses que nada tem em comum com democracia ou justiça social. Essa gente tem interesse próprio e a preservação de seu capital e de sua influência raramente não está à frente do bem estar da sociedade.
Nesse sentido, a falta de fiscalização e de responsabilização dessas empresas de comunicação de massa, isso sim, pode representar riscos à democracia. Golpes são gestados nas páginas de revistas ou nas bancadas onde se diz “boa noite”. Governos são derrubados, planos econômicos boicotados, a “boataria” dissemina o pânico, a mentira e a calúnia denigrem biografias respeitáveis e as figuras mais deploráveis são colocadas como paladinos da virtude. A democracia é corroída, apodrece. A ilusão da falsa neutralidade obscurece os obscuros interesses de classe do “capitalista midiático”, ligado umbilicalmente aos setores mais reacionários e egoístas da sociedade brasileira.
Em uma sociedade com um judiciário independente, não atrelado ao poder executivo, parece extremamente salutar que a imprensa não fique acima do bem e do mal, como se fosse o anjo a decidir que vai pra tal ou qual barca. Só dessa forma podemos evitar que ela paire como uma guilhotina sobre a democracia.

Saymon de Oliveira Justo

sábado, 23 de junho de 2012

Auguste de Saint-Hilaire: um francês em terras francanas


Durante mais de três séculos os domínios coloniais lusitanos na América permaneceram “fechados” ao mundo. Com sérias limitações financeiras e escassez populacional, Portugal esforçou-se por manter as províncias brasileiras isoladas tanto em relação às outras nações como inclusive entre si mesmas. Além da própria geografia e dos limites dos meios de transporte que favoreciam esse “isolamento”, o medo de perder o monopólio do comércio ou de ver fragmentado seu império colonial contribuíram para essa postura em relação ao Brasil. Porém, a partir de 1808, com os exércitos de Napoleão marchando às margens do Tejo e a consequente fuga da família real portuguesa para o Brasil, essa situação se modificou. A corte no Rio de Janeiro, a abertura dos portos, a transferência de tribunais, repartições públicas, e da própria sede do império para além mar, abriu o Brasil ao mundo.
A partir de 1808 pintores, missões científicas, comerciantes, geólogos, botânicos, zoólogos, etnógrafos e até mesmo turistas, representavam o interesse europeu pelas exóticas terras brasileiras. Viajantes como o pintor Johann Moritz Rugendas, a inglesa Maria Graham ou o botânico Auguste de Saint-Hilaire, registraram cada qual a sua maneira o cotidiano de um Brasil em vias de profundas transformações políticas, sociais e econômicas. Auguste de Saint-Hilaire viajou por várias províncias brasileiras na primeira metade do XIX, catalogando fauna, flora e lançando seu olhar sobre os costumes e paisagens de cada região. Em seu “Viagem à Província de São Paulo” o naturalista francês retratou sua passagem pela Vila de Franca. De acordo com seus relatos teria chegado à região por onde atualmente está localizada a cidade de Ribeirão Corrente:


“Passamos diante de dois miseráveis sítios. Junto do primeiro, denominado Monjolinho, corre um pequeno ribeirão, que após um curso de cerca de 15 léguas, deságua no rio Grande, e que tem o nome de Ribeirão Corrente. Tornei a encontrar esse ribeirão no lugar onde fiz pouso – um lugarejo também conhecido pelo nome de Ribeirão Corrente, e que se compunha de vários casebres esparsos, habitados por diversas famílias. Esses casebres nenhum conforto prometiam, mas fui bem acolhido pelos seus moradores, o que me fez acreditar tratar-se de mineiros, porque os paulistas, muito hospitaleiros em certas regiões, são bem pouco tratáveis nessa que no momento eu percorria.” (p. 116).


Ao chegar à Franca Saint-Hilaire fala da vila “aprazivelmente localizada em meio de vastas pastagens” e registra a predominância de população mineira em domínios da Província de São Paulo: “era a mesma inteiramente habitada por mineiros”. Ainda de acordo com seus relatos, na época de sua passagem por terras francanas a localidade estava em um período de crescimento proporcionado pelas “terras férteis e excelentes pastagens”, que atraiam mineiros em busca de terras ou fugindo da justiça na província de origem.

“Não havia ali, ao tempo de minha viagem, senão cerca de umas cinquenta casas, mas já estavam assinalados os locais para a construção de um grande número delas, e era fácil perceber que Franca não demoraria em adquirir grande importância”. (p. 117)

O relato de Auguste de Saint-Hilaire constitui um interessante documento para a história da cidade, uma vez que o viajante deixa alguns apontamentos sobre o aspecto demográfico: “de 1818 a 1823, a paróquia contava cerca de 3.000 habitantes em idade de se confessar; em 1838, em todo o termo, 10.664 habitantes de todas as idades, dos quais, 9149 eram livres e 1.516 eram escravos”. Na segunda década do século XIX Franca já havia se tornado a principal localidade da região, sendo que em 1824 foi elevada à condição de cidade, Cidade Franca do Imperador, em homenagem ao presidente da província de São Paulo Antonio José da Franca e Horta.
Em sua passagem por Franca Auguste Saint-Hilaire faz referências a perturbações e desordens sociais, atribuindo-as ao “grande número de aventureiros e de indivíduos perseguidos pela justiça” que vieram para essa região. Precisaríamos confrontar os relatos de Saint-Hilaire com outras fontes para compreendermos a natureza dessas “desordens sociais”, uma vez que seu relato pode estar comprometido por alguma espécie de preconceito social ou juízos bastante específicos. Quem seriam as “pessoas de bem” a quem o francês se refere? E os “homens perigosos e de má fama”? Seriam simples criminosos desordeiros ou representantes de algum descontentamento político de caráter mais amplo? Um dos desordeiros a quem Saint-Hilaire se refere, por exemplo, é Anselmo Ferreira de Barcelos, que em 1938, liderando mais de setenta homens armados, entrou na vila a fim de destituir o Juiz de Paz local.


“Em seu começo, os assassinatos e muitos outros crimes multiplicaram-se no seio da novel população, a qual, entre seus habitantes, contava, como já disse, grande número de aventureiros e indivíduos perseguidos pela justiça. Na ocasião de minha viagem, esse estado de cousas não estava ainda muito mudado – Franca continuava a ser considerada como um covil de homens perigosos e de má fama (...).
Em 1838, Franca foi teatro de uma revolta incitada por um indivíduo chamado Anselmo Ferreira de Barcelos. Atrocidades foram cometidas, as pessoas de bem fugiram e o crime triunfou (...). A sedição obteve o mais completo triunfo, e é lícito temer que os hábitos de desordem e de insubordinação se radiquem cada vez mais nessa parte afastada da província.” (p. 117-118).


Por meio de outras fontes e estudos, sabemos que o episódio específico ao qual Saint-Hilaire se refere ficou conhecido por “Anselmada”. Anselmo Ferreira Barcelos, longe de ser um simples desordeiro, era um fazendeiro da região com considerável importância política e a revolta de 1838, acima citada, estava no quadro das rebeliões motivadas pela tensão entre a política centralizadora da regência e as ambições autonomistas regionais. A medida governamental que autorizou o presidente da província a nomear prefeitos, contrariou sobremaneira o poder local representado nas câmaras municipais e Anselmo Ferreira foi um desses representantes da elite local descontente com a política centralizadora da regência.
Apesar dessa referência negativa, Auguste de Saint-Hilaire parece ter levado uma boa impressão de Franca. Além disso, seu relato confirme muito do que sabemos sobre o desenvolvimento urbano brasileiro, onde as cidades eram mais um extensão do campo, das fazendas, dos engenhos, da “Casa Grande”, do que núcleos autônomos berço de uma burguesia independente, tal como na Europa Ocidental.



“É justiça dizer, entretanto, que encontrei entre os habitantes de Franca mais polidez e muito menos selvageria do que entre os mais antigos, das margens da estrada de Goiás a São Paulo. Com exceção de um pequeno número de operários e negociantes de comestíveis os demais eram todos agricultores, os quais, segundo o costume, não tinham casa na sede da comarca senão para nas mesmas passarem os domingos, casas que, durante os outros dias da semana, permaneciam fechadas, pois os respectivos proprietários residiam em suas fazendas. Os francanos cultivavam, fabricavam, em suas propriedades,  tecidos de algodão e de lã, e aplicavam-se especialmente à criação de gado vacum, de porcos e carneiros.” (p. 119).


As cinco páginas que Auguste de Saint-Hilaire dedica a Franca em seu relato de viagem não constitui um documento fundamental ou de grande importância para a história da cidade, bem longe disso. Por aqui passou e se demorou apenas alguns dias, porém, é bastante interessante a visão de um europeu, filho do século das luzes, sobre uma cidade ainda fortemente ligada ao campo, mas que já despontava como um importante núcleo urbano regional. Além disso, Auguste de Saint-Hilaire viajou por boa parte do Brasil na primeira metade do XIX e praticamente todos os historiadores dedicados ao período reconhecem e colocam em relevo a importância de seus apontamentos para a compreensão do cotidiano e costumes brasileiros. Assim, saber que esse viajante tão citado e reconhecido passou por terras francanas nos traz uma prazerosa sensação de familiaridade com a história do Brasil como um todo.

Saymon de Oliveira Justo

terça-feira, 1 de maio de 2012

LEVANTADO DO CHÃO

Gerações da família Mau-Tempo são ceifadas pelo latifúndio. A vida sendo consumida nas searas do Alentejo é apenas o microcosmo da estrutura fundiária de Portugal, tão dramaticamente pintada por José Saramago em seu “Levantado do Chão”. As vidas se passam e parecem não passar, como em um déjà vu, Domingos Mau-Tempo, João Mau-Tempo, Antônio Mau-Tempo...Um personagem sucede o outro, permanecendo a mesma desgraçada existência daqueles  que tem por único horizonte um pedaço de pão para o dia seguinte.  
Começam e terminam guerras, finda a monarquia, a república de Salazar abre suas asas de corvo sobre Portugal, tudo muda, mas não muda. Permanecem os Mau-Tempo, e tantos milhares de outros como eles, existindo apenas com o único fim lubrificarem a máquina construída por Deus, desde o início dos tempos, e diria Saramago, dos Maus-Tempos. Assim diz o padre Agamedes, confortando os pobres desgraçados com as dádivas d’além túmulo. Lamberto, Gualberto, Adalberto e tantos outros “Berto”, representam uma das extremidades da “Santíssima Trindade”, formada também pela Igreja e pela Guarda, que conforta de outras formas, um tanto quanto doloridas. O Latifúndio, tal qual uma entidade viva, nutrindo-se do sangue e suor daqueles que vieram ao mundo tão somente para isso, excreta apenas as formas cadavéricas e sem vida, já que essa nas searas ficou.

Estes homens e estas mulheres nasceram para trabalhar, são gado inteiro ou gado rachado, saem ou tiram-nos das barrigas das mães, põem-nos a crescer de qualquer maneira, tanto faz, preciso é que venham a ter força e destreza de mãos, mesmo que para um gesto só, que importância tem se em poucos anos ficarem pesados e hirtos, são cepos ambulantes que quando chegam ao trabalho a si próprios se sacodem e da rigidez do corpo fazem sair dois braços e duas pernas que vão e vêm, por aqui se vê a que ponto chegaram as bondades e competência do Criador, obrando tão perfeitos instrumentos de cava e ceifa, de monda e serventia geral. (José Saramago)


A escrita nada convencional de Saramago, e por vezes até um pouco árida ao leitor pouco familiarizado, transforma-se ao longo dos capítulos. Os personagens, antes “meros repetidores passivos e submissos de discursos alheios”, assumem as rédeas da narrativa, tal qual o fazem com suas próprias existências. Já não são mais simples objetos descritos pelo narrador, ao contrário, se descrevem, assumem as responsabilidades por suas ações. Após décadas de luta, que culminam na Revolução dos Cravos de 1974, os camponeses do Alentejo marcham para o Latifúndio, não mais para servirem Adalberto ou Gualberto, mas agora para serem senhores de si mesmos.
Como uma força da natureza os camponeses marcham. Não há mais “Senhor Padre Agamedes” ou Guarda que os detenham. Os mortos se levantam da terra que antes não lhes pertencia e qual numa procissão, mãos dadas aos seus camaradas, levantam-se do chão para o nascer de um novo dia.

“Levantado do Chão” fala de trabalhadores. Aprendemos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação. (José Saramago).