quarta-feira, 11 de maio de 2011

A NOVA GUERRA


Quem nunca assistiu um daqueles filmes de guerra sobre a “Grécia Antiga” ou o Império Romano. Grandes exércitos “se encarando”. Correm na direção um do outro, acontece o “choque”, se interpenetram até formarem uma massa tétrica. Nesse tipo de guerra, e em outras de tempos bem mais recentes, o cheiro do sangue no campo de batalha era o mesmo para vencedores e vencidos.
Já na Primeira Grande Guerra as trincheiras protagonizaram cenas dantescas. Quantas batalhas não foram vencidas na luta corpo a corpo? Naqueles idos era comum o soldado sentir o bafo no inimigo em seu rosto ao cravar-lhe a baioneta no ventre.
Na Segunda Guerra entram em ação novas máquinas de morte. Os bombardeios, os gazes, as metralhadoras, enfim, o massacre em massa já não mais distinguia militares de civis. A carniça de Stalingrado ou de Auschwitz impregnava a “civilizada Europa”. Os soldados ou carrascos, se é que se pode distingui-los, sentiam o cheiro da carne queimada como se fosse parte do espectro de odores da natureza.
Já na guerra do Vietnã, os famosos “sacos pretos” voltando para a América não deixavam espaço para ilusão sobre a proximidade da guerra. Corpos carbonizados, mutilados, o amigo ao lado com as entranhas de fora dando o último suspiro, o “inimigo invisível” presente em cada passo, tudo isso aproximou o campo de batalha do civil d’além Atlântico, que muitas vezes ainda presenciava a patética situação dos “neuróticos de guerra”.
Hoje, as chamadas “guerras cirúrgicas”, onde geralmente uma potência com tecnologia de ponta tenta submeter pela força das armas um Estado “militarmente inferior”, vem mudando a relação entre as partes.
Muitas vezes o guerreiro de hoje fica em uma sala com ar condicionado, onde em seu monitor, posiciona a mira e aperta o botão. Seu inimigo já não passa de um alvo, é totalmente impessoal. Mata em grande escala como em um vídeo-game. Não sente mais o cheiro do sangue, da carne queimada, não vê o olhar de agonia e nem o sofrimento daquele que acabou de ceifar a vida.
Seja do alto de uma poltrona estofada, apenas conduzindo os “aviões não tripulados”, ou mesmo em um dos famosos “caças invisíveis”, os contornos da guerra do futuro já se tornam bastante nítidos. Essa “guerra sem sangue” (apenas para uma das partes, pois para a outra a carnificina está em cada esquina), traz a falsa ilusão de “não sofrimento”. Os civis da potência militar, que assistem sobre seus gordos traseiros aqueles pontos verdes nos monitores, não se incomodam com a barbaridade dessa “guerra cirúrgica”, e só se levantam em protestos quando a economia se vê prejudicada pelos gastos com os “brinquedos da morte”.
Mas de forma alguma se iludam os comedores de “Mac Lanche Feliz”, pois a morte chega e continuará chegando ao seu território sob a forma do terrorismo, que está para a guerra de hoje como a guerrilha esteve para a de ontem.
Antes de tudo o terrorismo é o resultado e não a causa da arrogância político-militar das grandes potências. Os mortos do  “World Trade Center” são a resposta, a maneira de se fazer o “cheiro da batalha” chegar ao outro lado do Atlântico.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A HISTÓRIA DA GUERRA: NOVAS FONTES, ABORDAGENS E PERIODIZAÇÕES.

Fernand Braudel, ao tratar das “durações da história”, identifica três estruturas: a longa, “quase imóvel” na qual figuram os homens em suas relações com a natureza; a média e “lentamente ritmada”, onde estariam o “econômico” e o “social”; e a curta, “ocorrencial”, na qual se insere o “evento”. “A história tradicional, atenta ao tempo breve, ao evento, habituou-nos há muito tempo à sua narrativa precipitada, dramática, de fôlego curto”. (BRAUDEL: 2005: 44)
René Rémond, no primeiro capítulo de “Por uma história política”, deixa claro o eixo central do referido livro. Os diferentes artigos de diversos autores tratam do que ele chama de “renovação da história política”. Rémond começa esboçando uma “história da história política” e ressalta as principais críticas feitas a essa “modalidade” principalmente pela chamada Escola dos Annales:

Ela só tinha olhos para os acidentes e as circunstâncias mais superficiais: esgotando-se na análise das crises ministeriais e privilegiando as rupturas de continuidade, era a própria imagem e o exemplo perfeito da história dita factual (...) que fica na superfície das coisas e esquece de vincular os acontecimentos ás suas causas mais profundas. (2003: p. 16-17).

Ao privilegiar essa curta duração a história política desconhecia “as forças profundas e as causas ocultas” (IDEM: 18) que condicionariam o curso das coisas. No “evento” ganhavam relevo as grandes personalidades em detrimento das “massas”, do “homem comum”. Mais a frente Rémond fala de como a história política caiu em descrédito e perdeu sua hegemonia para a história econômica e social. Porém, ressalta que a partir da década de 1960 se deu seu retorno “com força total”, e isso pode ser visto tanto através do aumento no número de trabalhos consagrados a sua temática, como também pelo retorno do “político” aos currículos escolares[1]. Mais importante ainda é que esse retorno da história política veio acompanhado de uma renovação, que trouxe ao campo novos temas, periodizações, fontes e abordagens.
A história da guerra partilhou das mesmas críticas feitas à história política. Acusada de restrita apenas a curta duração dos conflitos, criticada pelo enfoque nos “grandes” chefes militares e heróis, e por dedicar suas linhas a simples descrição de batalhas, ela ficou muito tempo “desacreditada” tal qual a chamada “história tradicional” [2].  Jean-Pierre Azéma ressente-se de como sua geração teve a “cabeça cheia de todo um anuário de generais e de batalhas”. (IDEM: 402)
Em “Os voluntários da pátria na guerra do Paraguai: o comando de Osório”, nota-se claramente essa forma tradicional de abordagem da guerra:

Na operação, montada com mais recursos, tomaram parte, conforme o Generalíssimo Mitre, cerca de18 mil homens, entre brasileiros e argentinos. Ele próprio dirigiu a ação e levou deTuiuti para o acampamento de Curuzu o reforço de 32 batalhões (...). De Tuiuti também o marechal Polídoro, comandante do 1º Corpo de Exército, mandou 5 batalhões de infantaria, grupados em uma brigada, a que denominou Brigada Auxiliar, sob o comando do Tenente-Coronel Antônio da Silva Paranhos, um dos grandes infantes daquela época.
(DUARTE: 1983: p. 15).

No referido livro assiste-se á um verdadeiro desfile dos generais encarregados de levar a bom termo a guerra contra o Paraguai. O autor não procura fazer reflexão alguma sobre as motivações econômicas da guerra, sobre o moral da tropa ou alguma questão relativa ao “soldado raso”. Dedica-se exclusivamente em descrever pormenorizadamente as batalhas e a enfatizar o “gênio militar” dos oficiais brasileiros.
Porém, juntamente com a história política, a história da guerra voltou do “ostracismo” no qual se encontrava também “renovada” e são as especificidades de tal renovação que serão abordadas nas linhas que se seguem.
Jean-Pierre Azéma, em seu artigo anteriormente citado, defende que se por um lado a guerra não deve ser estudada encarcerada em si mesma, por outro também não pode ser colocada como mero reflexo de outra “estrutura”, como por exemplo, a econômica. As guerras, pelas grandes modificações que provocam (tecnológicas, políticas...) tem papel protagonista na sociedade e assim devem ser abordadas. Dessa forma, o autor defende uma “leitura política” da guerra, uma vez que a “ida aos extremos” não está ligada á uma “gramática própria”, mas sim a fins políticos.
Um bom exemplo de como uma leitura da guerra apenas por sua “própria gramática” pode prejudicar o entendimento do historiador, é encontrado na Segunda Guerra Mundial. Em 1941 a Wehrmath, para desespero de vários oficiais alemães, invade a União Soviética. Do ponto de vista simplesmente militar isso parece um absurdo, uma vez que foi aberta uma gigantesca frente de batalha e a experiência de uma guerra com duas frentes, no conflito de 1914, já havia demonstrado aos alemães os perigos dessa empreitada.
Porém, ao observar o episódio com uma perspectiva política, a irracionalidade logo desaparece. Na década de 1930 a animosidade das potencias ocidentais (principalmente a Inglaterra) em relação aos soviéticos era grande e uma cruzada antibolchevique constituía uma possibilidade nada remota, pelo contrário. Hitler, procedendo a uma leitura política da situação, calculou que um ataque a União Soviética poderia dissuadir Inglaterra e França de continuarem no conflito, uma vez que o temor dessas nações ao espectro comunista seria maior que o receio da expansão de uma Alemanha nazista. Apesar dos acontecimentos a posteriori terem mostrado o erro de calculo de Hitler, sua análise fazia bastante sentido no contexto geopolítico da época.

A Guerra Civil Espanhola apresentava, desse modo, um dilema para Stálin. Ele não poderia consentir na destruição da Frente Popular Espanhola e na subseqüente emergência de outro Estado fascista que representaria, além do mais, o isolamento de seu aliado, a França. No entanto, uma vitória republicana que levasse a uma revolução social na Espanha poderia incentivar os Aliados a se unirem á Alemanha contra a União Soviética. (SALVADÓ: 2008. p. 113).

Ao historiador das guerras contemporâneas que pretende uma “abordagem renovada”, cabe atentar para algo salientado por Azéma. A Revolução Francesa trouxe duas mudanças decisivas para as guerras: “a democratização”, com a convocação em massa e o “homem comum” como “carne de canhão”; e a chamada guerra ideológica, ou seja, a necessidade de justificar a “ida aos extremos” perante as massas que irão morrer nos campos de batalha e as que vão “financiar” com seu labor o conflito.
As guerras atuais[3] não dependem mais apenas do “humor” de um restrito círculo governamental-militar, ao contrário. A necessidade de justificá-las perante as massas é cada vez maior, uma vez que elas é que constituirão o “grosso” das tropas e colocarão em movimento a economia de guerra. O moral tanto da tropa quanto da “retaguarda” é condição sine qua non para a vitória. Um exemplo representativo disso é o papel que a opinião pública norte-americana teve na retirada das tropas de seu país do Vietnã em 1973.
Nesse sentido, um material que propicia uma abordagem diferenciada da guerra são os discursos justificando-a. A problemática da guerra justa/ injusta é bastante interessante e está em relação estreita com o advento do “povo massa”. Assim, ao analisar tal material o historiador se depara com verdadeiros malabarismos usados por governantes para justificarem a “ida aos extremos”.

DECLARAÇÃO DE HITLER EM 1º DE SETEMBRO DE 1939.

“Pela primeira vez, esta noite, tropas regulares polonesas abriram fogo contra o território do Reich. A partir das 5.45 hs responderemos ao fogo e, de agora em diante, às bombas replicaremos com bombas”. (CODEX: 1966, p. 13)

Apesar de toda política externa alemã ser claramente expansionista após 1933, Hitler mostra nesse discurso sua preocupação em justificar a invasão do território polonês como uma medida defensiva, ou seja, a legitimidade para as ações alemãs estaria no fato de terem sido agredidos primeiro. O mais impressionante, contudo, é uma versão bastante aceita sobre esses ocorridos dos idos de 1939:

Eram 8 ou 10 soldados. À frente um oficial. Os uniformes, poloneses...Irromperam bruscamente na sala a se deslocarem em silêncio. O oficial levantou o braço. Os soldados prepararam as armas automáticas. Com um gesto brusco o braço desceu. Numa ensurdecedora descarga estremeceu as paredes do pequeno edifício.
A seguir, com a mesma rapidez com que chegaram, os soldados atacantes se retiraram. Mais adiante, porem, se movimentaram com menos pressa, de tal modo que os habitantes que acorreram às janelas de suas casas puderam observar claramente seus uniformes poloneses e escutaram as suas vozes gritando em idioma polonês. Estranha demora aquela. Todo o povoado foi testemunha, dessa maneira, do criminoso ataque que os soldados poloneses efetuaram contra aquele pacífico posto alemão.
Mas nem tudo havia terminado ainda. No interior da estação transmissora, manipulando rapidamente os aparelhos, um soldado polonês leu ante o microfone uma declaração em que dizia haver chegado o momento da guerra entre a Polônia  e a Alemanha.
O grupo de soldados poloneses retirou-se para o território da Polônia e, após percorrerem um breve caminho, voltou sobre seus passos, reingressando em território alemão. O oficial “polonês” que os comandava era Alfred Neujoks, oficial alemão da SS. Os soldados “poloneses” que o seguiram na ação eram homens pertencentes a sua própria seção da SS.
 (IDEM: p. 12)

Ao analisar tais discursos é preciso também estar atento às diferenças entre aqueles destinados ao público interno e a comunidade internacional. Tanto a invasão da Polônia quanto a da União Soviética foi justificada em termos defensivos, ou seja, como uma reação a agressão ou provocação anterior. Porém, perante a opinião pública alemã os nazistas sempre defenderam o “direito natural” dos alemães conquistarem seu “espaço vital”. Assim, a invasão dos países eslavos e o massacre da população local eram justificados pela ideologia nazista, impregnada da dicotomia entre raça superior/ inferior. Possivelmente havia um terceiro nível de discurso destinado ás SS que estavam encarregadas da “solução final” para a questão judaica. Um estudo desse material seria bastante esclarecedor no sentido de entender como era o trabalho ideológico dos nazistas com aqueles encarregados diretamente do extermínio de outros seres humanos e que por conseqüência, tinham que ser “embrutecidos” para a boa execução do “trabalho”. Cabe, portanto, atentar para o que disse um oficial SS na Ucrânia:

Somos uma raça superior e devemos governar com dureza, mas com justiça (...) Arrancarei deste país, entretanto, tudo que puder. Não vim para espalhar bem-aventuranças (...) A população deve trabalhar, trabalhar sempre (...) Não viemos para distribuir o maná. Viemos para criar as bases da vitória.
Somos uma raça superior que precisa lembrar que o mais humilde operário alemão é, racial e biologicamente, mais valioso que a população daqui. (IDEM: 1966, p. 16)

Enfim, a problemática entre guerra justa/ injusta está ainda bastante presente em nossos dias. Se em certa época a “cruz” foi a justificativa para se invadir e pilhar tantos territórios, a “democracia” hoje muitas vezes serve ao mesmo papel.  O que vale enfatizar, contudo, é que abordagens desse tipo lançam novas perspectivas sobre a guerra, produzindo um discurso histórico que rompe com o eventual, o factual e com os “grandes heróis”.
Um outro aspecto sobre o qual vale a pena algumas considerações é o que diz respeito ás fontes para a história da guerra. Ao invés de se deter nas ordens do dia, nas diretivas de comandantes, enfim, nos documentos oficiais, o historiador pode explorar um outro tipo de material e lançar luz sobre aspectos normalmente negligenciados nos relatos de guerra. Jean-Pierre Azéma cita alguns estudos baseados nas correspondências dos soldados. Esse tipo de fonte muitas vezes contradiz os documentos oficiais, pois neles muitas vezes transparecem as dúvidas, apreensões e medos dos soldados em relação a guerra.
O que diria um “pracinha brasileiro” na Itália á seus familiares? Qual sua percepção sobre o fato de estar arriscando sua vida em uma terra longínqua, matando pessoas que mal conhece e vendo seus companheiros morrerem a todo o momento? Teria ele a consciência de estar lutando pela democracia? Aliás, a idéia de democracia lhe faria algum sentido?
Hobsbawm, em um artigo de seu livro Sobre História, fala de uma conferência internacional de historiadores ocorrida em 1994 que foi dedicada a memória dos massacres alemães na Segunda Guerra Mundial. “Os historiadores orais (...) estavam chocados por descobrirem que os habitantes (...) não culpavam tanto os alemães pelos massacres quanto os jovens locais que se haviam juntado aos guerrilheiros e, segundo achavam, haviam irresponsavelmente levado seus lares ao desastre”. (2002: p. 281).
Esse constitui um bom exemplo de como o historiador da guerra, ao não se restringir as fontes tradicionais, pode se surpreender com algumas constatações que parecem fugir ao que previamente imaginava ou que fazia parte do senso comum. Assim, a história da guerra atualmente ganha espaço e bastante renovada com novas abordagens, periodizações, fontes, enfim, novas fronteiras a serem desbravadas.


[1] Cabe ressaltar que René Rémond faz essas reflexões levando em conta predominantemente a “realidade francesa”.
[2] Cabe aqui ressaltar que apesar de “desacreditada” no meio acadêmico, muitas vezes a demanda”popular” por esses “relatos tradicionais” permaneceu grande.
[3] Contemporâneas.