quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

VIAGEM A OURO PRETO


Ouro Preto é um pedaço do século XVIII encravado na modernidade. O ronco dos automóveis, o trânsito meio que bagunçado e as modernas agência bancárias combinam-se harmonicamente com a arquitetura colonial, com o calçamento de pedras e com a onipresença da Igreja Católica. Símbolo da opulência do ouro e da grandiloquência do barroco, é hoje uma cidadezinha aprazível, uma boa e agradável síntese da mineiridade.
Mergulho na     Ouro Preto de hoje e logo sinto os odores do passado. Vejo as “Marílias” ricamente adornadas, os jovens e apaixonados poetas da Arcádia, os distintos e vistosos homens da guarda, mercadores, artesãos, engenheiros, padres...Ouço os cânticos alegres das procissões e os típicos sons de uma vigorosa cidade que se ergue sobre o áureo brilho.  Enfim, uma atmosfera vivaz e resplandecente como o ouro das minas turva meus sentidos.
Mergulho um pouco mais e conforme o faço, essa exuberante Ouro Preto vai se desvanecendo, dando lugar a um outro mundo, um mundo lúgubre, onde os anjos, arcanjos, querubins e toda hierarquia celestial cede espaço a Mefistófeles. Onde Ariel sucumbe a Caliban. O que toca meus ouvidos agora são os gemidos dos escravos e o tilintar das correntes; os odores que impregnam meu Ser são os da senzala e o do sangue vertido pelo açoite. Sinto o fedor da carne lacerada e vejo o espectro da morte obumbrando por sobre as montanhas. Acabaram-se as ternuras, os amores e a bucólica poesia se transforma em cântico de horrores. Nas vielas escuras os sussurros da conspiração é o prólogo de mais sangue e os santos homens de negro aguardam sedentos por mais e mais...
Os portugueses se foram. Os escravos permanecem sepultados, os poetas calados e os mártires enforcados. Ouro Preto permanece e não permanece. Agora as “mãos de aço” da Vale rasgam as montanhas ávidas pelo “novo ouro” e os herdeiros dos escravos empunham novas armas, erguendo-se contra a nova e velha opressão.

Saimov


domingo, 27 de novembro de 2011

A ÁRVORE DA VIDA


 
Árvore da Vida é uma carta de amor à humanidade, ao planeta Terra e uma constatação de nossa infinita incapacidade de compreensão de nossa existência. Por mais de duas horas, Terrence Malick nos leva a um passeio pela história do planeta, a...o mesmo tempo em que discute nossa pretensa finitude e as sempre complicadas e tensas relações entre esses seres que cismam em complicar suas vidas.
É difícil descrever com propriedade o que é Arvore da Vida. Podemos dizer, no entanto, que Malick é brutalmente pretensioso quando fala sobre a humanidade. Que o diretor a partir do microcosmo de uma típica família americana expõe tudo o que sente pelo ser humano e suas reações a seus irmãos e ao planeta. Que no meio de seu filme, Malick coloca em quadro uma preciosa e inesquecível versão para a origem do universo e da criação da terra. E que em cada fotograma de seu novo filme Terrence Malick faz uma obra prima.
Descrever a mais completa perfeição de imagens, tons e ideias em película é um trabalho árduo. Desde o inacreditável uso do som, que ecoa pela sala nos envolvendo em um casulo sonoro (sendo fundamental para a construção de algumas sequências do filme), passando pelas excelentes atuações de todo o elenco, culminando no desbunde visual que Malick apresenta. Não existem palavras para exemplificar as sensações. Tudo funciona além da perfeição, com uma fluidez que beira o inacreditável.
O diretor consegue a proeza de se comunicar diretamente com nossas emoções, já que cada um de nós de uma forma ou de outra, já esteve no papel de um dos O'Brien.
Malick é sutil ao ir e voltar no tempo, apresentando de forma pretensamente desordenada os fatos e os efeitos de pequenos eventos, e grandes traumas que marcam a vida.
As comparações a 2001 começam ai, Kubrick assim como Malick é um humanista. Embora seus filmes sejam todos de uma rigidez que beira (às vezes ultrapassa) o sadismo, Kubrick tinha fé no estado bruto do homem e o representava com vigor e força. Em 2001, sua intensa necessidade de respostas encontrou seu ápice, ao mostrar a historia da humanidade sem ter a menor intenção de premiar-nos com alguma mágica resposta tirada de um livro esotérico ou de autoajuda. Kubrick fez de 2001 seu testamento para as estrelas. Malick faz de Árvore da Vida a sua versão desse mesmo testamento. Ambos parecem apresentar suas visões pessoais sobre a mesma pergunta, e ambos não se sentem dignos de serem os responsáveis por apresentarem respostas para seus magnânimos questionamentos.
Malick é humilde ao admitir que não sabe as respostas para suas perguntas e ao fazer isso tem a exata noção de sua infinita pequenez diante da incomensurável pujança do universo. Os seguidos momentos de união entre átomos e elétrons, com o surgimento de nebulosas, o fogo que brota da cáustica terra virgem, os mares que rompem as pedras, a chuva que torrencialmente limpa e hidrata planícies destruídas, tudo representando o ato da criação. Malick faz uma das mais profundas declarações sobre fé que vi em muitos e muitos anos numa tela de cinema. Isso tudo sem apelar para os misticismos, os símbolos e o discurso religioso. Malick não fala de religião, fala de algo muito mais intenso, verdadeiro e real: fé.
Somente a mente de um gênio poderia unir dinossauros e um discurso abertamente sobre fé em uma mesma narrativa, sem soar exagerado. Pelo contrário, a união das duas forças parece - no filme de Malick - jamais ter precisado brigar, parecem velhos amantes que se encontraram e estão papeando em um café, tentando entender como puderam viver tanto tempo longe um do outro. Fé e ciência para Malick parecem uma coisa só. Misturar as mais precisas e cientificamente corretas pesquisas sobre a criação do universo e ainda assim defender abertamente uma força superior é uma tarefa praticamente impossível. Eu disse, praticamente, já que Malick prova ser possível, prazeroso e visceral.
A fotografia é assombrosa. Como a natureza, a fotografia é fluida, intempestiva e inesperada. Segue o fluxo de rio, o barulho de passos na grama, o som de uma profunda respiração. Entende que a natureza deve apontar a forma como deve ser vista, e a obedece de forma humilde e sincera.
A já inesquecível sequencia "espacial" é amplificada pela delicadeza e sensibilidade de cada acorde, em cada nova nota que rompe a tela, em cada novo tema que retrata a naturalidade cósmica inerente aos eventos retratados. É glorioso, magnífico.
Árvore da Vida é um filme complexo - isso só pra usar uma palavra popular. Te desafia a pensar não só no filme, mas principalmente no que ele discute. Te choca com a beleza estonteante de cada plano e com sua pretensão desmedida em se fazer ouvir em um momento do cinema em que poucos - muito poucos - têm alguma coisa dizer.
Talvez muitos leitores/espectadores se sintam ofendidos e profundamente frustrados, com o fato de Malick ter a petulância de não facilitar em nada o nosso "trabalho". Ele pode te ofender com sua plena falta de vontade de lhe premiar com respostas. Pode lhe enfurecer com a perspectiva de mais de duas horas de questionamentos metafísicos e espirituais e pode lhe fazer questionar a sanidade até mesmo do crítico mais empolgado e devotado.
Essa reação é perfeitamente normal e compreensível. É o desfio de Malick a humanidade: decifra-me ou devoro-te, tal qual uma esfinge encravada em nosso inconsciente.
Eu, de minha parte, jamais tentarei decifrá-lo, prefiro ser devorada em minha profunda ignorância, consumida por suas imagens, sons e ideias. Fazer parte do cosmo, digerida pelas estrelas e sublimada aos céus, onde quem sabe consiga responder se Malick tinha razão.
 
Por: Holy Randi

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A FÊMEA DO BONOBO


Com 98 % de carga genética partilhada com os humanos, os bonobos provavelmente são um de nossos “parentes” mais próximos na árvore evolutiva. A sociedade dos bonobos é centrada na fêmea e de acordo com pesquisadores, diante de uma possibilidade de conflito entre dois bandos as matriarcas de um e outro grupo esfregam as genitálias para selar a paz.
Como ainda estamos longe do dia em que Dilma Rousseff e Cristina Kirchner esfregarão suas genitálias para resolverem uma contenda internacional ou mesmo judeus e palestinos transformarão a Faixa de Gaza em uma homérica suruba pacifista, temos que conviver com a violência como uma das possibilidades para resolução de conflitos, sobretudo, quando todas as tentativas de diálogo foram frustradas pela intransigência de ao menos uma das partes.
Gostemos ou não, a violência e repressão são indissociáveis, ao menos até hoje, de nossas organizações sociais. Os romanos submetiam seus prisioneiros de guerra a condição de escravos para colocar a economia em movimento; os indianos até hoje convivem com os subprodutos da sociedade de castas, mantida também pela violência. O século XX assistiu carnificinas de proporções titânicas movidas pelo radicalismo ideológico.  Enfim, a violência não é monopólio de cristãos, comunistas, muçulmanos, capitalistas, “bushistas” ou “lulistas” e não faltam exemplos de como está emaranhada na História das sociedades humanas.
Porém, violência e repressão, tal qual Mefistófeles, assumem aspectos e graus diversos. Paulo Freire, em “A Pedagogia do Oprimido”, desenvolve os conceitos de “ser mais” e “ser menos”, que a princípio podem parecer românticos e vazios, mas que na verdade levam a importantes questionamentos. “Ser mais” estaria ligado ao desenvolvimento de toda potencialidade humana (especialmente as relacionadas ao conhecimento) e “ser menos” diz respeito aos entraves a esse desenvolvimento. A partir desse raciocínio, percebemos formas de violência bastante veladas, porém, não menos efetivas e odiosas para suas vítimas. O trabalhador constrangido a passar metade do seu dia a serviço de seu patrão pode estar sendo violentado, uma vez que é despojado das mínimas condições físicas e mentais para ter contato com a ciência, a arte, o “ócio criativo”, enfim, ele não pode “ser mais”, pois seu salário mal paga sua subsistência e seu tempo livre é usado para “descansar com o único fim de estar descansado para trabalhar no outro dia”. Inclusive a “educação” que lhe é ofertada serve mais para qualifica-lo como mão-de-obra do que qualquer outra coisa. Esse trabalhador é violentado sistematicamente pela extenuante jornada de trabalho a que é submetido e reprimido de desenvolver-se intelectualmente pela impossibilidade econômica.
Milhares de crianças já nascem condenadas a “ser menos”, uma vez que desde a tenra idade deixam de “ser crianças” para tornarem-se parte importante no sustento da família. Assim, enquanto uns poucos desfrutam de “escolinhas de futebol”, livros da série “Vaga-lume”, “das feiras de ciência da escola”, das “Barbies” e “Hello Kitty”, considerável parte de nossas crianças se transformarão em adultos mal alfabetizados aptos apenas a construírem a riqueza alheia. Isso também é violência.
Nossa legislação permite que pessoas desviem exorbitantes somas de recursos destinados a hospitais e escolas para suas casas na praia, e ainda assim continuem impunes. Isso também é violência. A violência econômica muitas vezes condena mais pessoas a miséria que granadas ou fuzis e apesar de aparentemente “mais limpa”, ela apenas tem sua carnificina encoberta por uma ideologia disseminada por instituições estatais, pelos meios de comunicação e pelo “sistema de educação” que patrocina.
Muitos pacifistas, inclusive os mais sinceros, não reconhecem essas formas veladas de violência, porém, soltam gritos de horror quando grupos organizados de setores oprimidos da população empregam certas formas de violência, as vezes as únicas disponíveis, para sacudir o jugo da violência e repressão a que são submetidos diariamente. É a violência da autodefesa, talvez uma das mais legítimas formas de violência. Por vezes, uma maioria se vê em condições tão desesperadoras de existência que precisa se levantar, sacudir o jugo e nesse processo, ou emprega formas de violência e repressão ou se vê massacrada. Em 1964, no Brasil, o “querer evitar derramamento de sangue” possibilitou a instalação do “moedor de carne” dos militares. Allende, se tivesse prendido ou reprimido uma meia dúzia a mais de golpistas, poderia ter evitado o banho de sangue da ditadura encabeçada por Pinochet.
A violência existe, gostemos dela ou não, inclusive é condição sine qua non para a existência do Estado. Enquanto não aprendermos a solucionar conflitos esfregando as genitálias, ao modo dos bonobos, ou pelo diálogo, como parece desejável, teremos que conviver com ela, tentando utiliza-la da forma mais racional e progressista para a maior parte da humanidade e apenas quando e na medida estrita das necessidades. Novos holocaustos, Gulags, massacres por motivações racistas, religiosas ou ideológicas, devem e podem ser evitados a todo custo. Porém, o pacifismo, seja o cínico ou sincero, que não enxerga a violência econômica e social e nega o direito à rebelião ao oprimido, é tão opressor quanto o mais temido dos carcereiros.
O pensamento dialético permite compreendermos as coisas de forma não absoluta e sim em sua inegável condição histórica. O egoísmo, em si, não é bom ou ruim, podendo assumir um caráter progressista ou não em determinadas condições. A mesma ciência que proporcionou a penicilina possibilitou os atos terroristas de Hiroshima e Nagazaki. O medo que paralisa também nos mantém vivos e a coragem pode estar a um passo da insanidade. O mesmo acontece com a violência.

Saimov

quinta-feira, 9 de junho de 2011

TERRA NEGRA

Terra negra, de Andrew Méier, é uma verdadeira viagem à Rússia pós-soviética. O livro não é um simples relato de um turista comparando a Rússia com sua terra natal, ao contrário. Méier é profundo conhecedor da língua e da cultura russa. Em sua obra sentimos o clima opressivo de Moscou, o cheiro da carnificina na Chechênia, o vento gelado e a sensação de liberdade da vastidão siberiana, a mistura de culturas das Sakalinas, enfim, o caleidoscópio de paisagens e culturas que formam a paisagem e a cultura desse país tão fascinante que é a Rússia.
Méier relata suas viagens pelo antigo império dos czares em meados dos anos 1990. O país, recém saído do regime “comunista”, escancarou sua economia aos “investimentos” privados. As antigas estatais foram parar nas mãos dos “novos magnatas”, estrangeiros e nacionais. Os arsenais do Exército Vermelho também. Moscou aparece como uma terra opressiva, onde convivem a secular corrupção e autoritarismo, com a liberdade de mercado, que parece tornar tudo mais opressivo ainda, sobretudo, para as classes mais baixas.
A Chechênia é como um buraco negro engolindo a juventude de milhares de recrutas do exército russo e de civis de diversas etnias. É uma verdadeira encruzilhada na qual se meteram Ieltsin e Putin.
Na vastidão siberiana, ao longo do curso do rio Ienissei, passamos pelas “cidades atômicas”, onde conforme as piadas de populares, as crianças cresciam mais que em qualquer outra parte. Nesse mesmo caminho adentramos às “cidades mineradoras”, antigos Gulags, que ajudaram a construir o poderio soviético sob os ossos de milhares de inocentes.
O livro de Méier não é uma obra histórica, tampouco um tratado sociológico, é apenas o olhar de um viajante encantado com a complexidade de uma terra encantadora por sua natureza, seu povo e formação histórica. Nessa viagem a bordo dos olhos de Andrew Maier, somos levados a conclusão de que o autoritarismo não começou com os bolcheviques e tampouco terminou com eles. O pesado fardo da servidão e autoritarismo do secular regime dos czares, embrenhou-se nos ideais comunistas, perpassando-os, fazendo-se sentir a todo o momento nessa encantadora viagem á “terra negra”.

Saimov

Terra Negra: uma viagem pela Rússia pós-comunista
Meier. Andrew. Editora Globo. 2005.
 

quinta-feira, 2 de junho de 2011

A MARCHA PELA INTOLERÂNCIA

Os jornais de todo país noticiaram nessa segunda-feira a Marcha pela Família, que reuniu cerca de 20 mil católicos e evangélicos em Brasília. Lembro-me de um evento semelhante nos idos de 1964, que acabou sendo uma espécie de prólogo para um golpe militar que instaurou um regime de ódio, terror e intolerância no Brasil.
No melhor espírito cristão, os manifestantes armados com as sagradas, ou sangrentas, escrituras, marchavam contra o Projeto de Lei (PL) 122/06, que criminaliza a homofobia. Resumindo, reivindicavam o legítimo direito de serem intolerantes e manifestarem seu ódio contra pessoas que escolheram viver de maneira diferente.
Pelo contexto geral da obra, a tal marcha também me traz a mente as manifestações nazistas em meados da década de 1930, onde os alvos arianos legitimamente praticavam seu direito de ódio contra as raças inferiores. Claro que existem diferenças gritantes entre esses dois contextos: a suástica foi substituída pela cruz e o Mein Kampf pela Bíblia.
Tal qual a lei que criminaliza o racismo, a PL 122/06, se aprovada, seria uma grande conquista social, pois constituiria um fundamento legal tanto contra a violência aberta e selvagem que assistimos em nosso dia-dia, como também contra formas mais sutis, porém, não menos violentas, de discriminação homofóbica.
Semana passada já havíamos sido brindados com uma verdadeira Jihad católico/evangélica contra um material que o Ministério da Educação iria distribuir na rede pública de ensino. O popularmente chamado Kit Gay constituía uma tentativa de amenizar a homofobia na sociedade, uma vez que mostrava relações entre casais do mesmo sexo como tão dignas de respeito quanto as heterossexuais.
Em um e outro episódio as bancadas religiosas empunharam suas cruzes e saíram em marcha pelo ódio e intolerância.
Lamentável! Não me espanto com mais nada! Em plena “Era das viagens espaciais” ainda encontramos práticas da Idade Média. Faço minhas as palavras do sábio Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho”. Sinceramente não me causaria espanto se na próxima semana, em nome da família e dos bons costumes, assistirmos á uma “Marcha pela Fogueira contra os hereges”.
Finalizo meu texto com as cálidas palavras do angelical deputado Jair Bolsonaro, representante da bancada católica no Congresso:

Eu acredito em Deus. Sou católico. Mas é coisa rara ir à Igreja. Eu já li a Bíblia inteirinha, com atenção. Levei uns sete anos para ler. Você tem bons exemplos ali. Está escrito: "A árvore que não der frutos, deve ser cortada e lançada ao fogo". Eu sou favorável à pena de morte.”


SAIMOV

P.S. Retomando a discussão anterior, não vi na tal “Marcha da Intolerância” nenhum representante da comunidade científica.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

A NOVA GUERRA


Quem nunca assistiu um daqueles filmes de guerra sobre a “Grécia Antiga” ou o Império Romano. Grandes exércitos “se encarando”. Correm na direção um do outro, acontece o “choque”, se interpenetram até formarem uma massa tétrica. Nesse tipo de guerra, e em outras de tempos bem mais recentes, o cheiro do sangue no campo de batalha era o mesmo para vencedores e vencidos.
Já na Primeira Grande Guerra as trincheiras protagonizaram cenas dantescas. Quantas batalhas não foram vencidas na luta corpo a corpo? Naqueles idos era comum o soldado sentir o bafo no inimigo em seu rosto ao cravar-lhe a baioneta no ventre.
Na Segunda Guerra entram em ação novas máquinas de morte. Os bombardeios, os gazes, as metralhadoras, enfim, o massacre em massa já não mais distinguia militares de civis. A carniça de Stalingrado ou de Auschwitz impregnava a “civilizada Europa”. Os soldados ou carrascos, se é que se pode distingui-los, sentiam o cheiro da carne queimada como se fosse parte do espectro de odores da natureza.
Já na guerra do Vietnã, os famosos “sacos pretos” voltando para a América não deixavam espaço para ilusão sobre a proximidade da guerra. Corpos carbonizados, mutilados, o amigo ao lado com as entranhas de fora dando o último suspiro, o “inimigo invisível” presente em cada passo, tudo isso aproximou o campo de batalha do civil d’além Atlântico, que muitas vezes ainda presenciava a patética situação dos “neuróticos de guerra”.
Hoje, as chamadas “guerras cirúrgicas”, onde geralmente uma potência com tecnologia de ponta tenta submeter pela força das armas um Estado “militarmente inferior”, vem mudando a relação entre as partes.
Muitas vezes o guerreiro de hoje fica em uma sala com ar condicionado, onde em seu monitor, posiciona a mira e aperta o botão. Seu inimigo já não passa de um alvo, é totalmente impessoal. Mata em grande escala como em um vídeo-game. Não sente mais o cheiro do sangue, da carne queimada, não vê o olhar de agonia e nem o sofrimento daquele que acabou de ceifar a vida.
Seja do alto de uma poltrona estofada, apenas conduzindo os “aviões não tripulados”, ou mesmo em um dos famosos “caças invisíveis”, os contornos da guerra do futuro já se tornam bastante nítidos. Essa “guerra sem sangue” (apenas para uma das partes, pois para a outra a carnificina está em cada esquina), traz a falsa ilusão de “não sofrimento”. Os civis da potência militar, que assistem sobre seus gordos traseiros aqueles pontos verdes nos monitores, não se incomodam com a barbaridade dessa “guerra cirúrgica”, e só se levantam em protestos quando a economia se vê prejudicada pelos gastos com os “brinquedos da morte”.
Mas de forma alguma se iludam os comedores de “Mac Lanche Feliz”, pois a morte chega e continuará chegando ao seu território sob a forma do terrorismo, que está para a guerra de hoje como a guerrilha esteve para a de ontem.
Antes de tudo o terrorismo é o resultado e não a causa da arrogância político-militar das grandes potências. Os mortos do  “World Trade Center” são a resposta, a maneira de se fazer o “cheiro da batalha” chegar ao outro lado do Atlântico.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A HISTÓRIA DA GUERRA: NOVAS FONTES, ABORDAGENS E PERIODIZAÇÕES.

Fernand Braudel, ao tratar das “durações da história”, identifica três estruturas: a longa, “quase imóvel” na qual figuram os homens em suas relações com a natureza; a média e “lentamente ritmada”, onde estariam o “econômico” e o “social”; e a curta, “ocorrencial”, na qual se insere o “evento”. “A história tradicional, atenta ao tempo breve, ao evento, habituou-nos há muito tempo à sua narrativa precipitada, dramática, de fôlego curto”. (BRAUDEL: 2005: 44)
René Rémond, no primeiro capítulo de “Por uma história política”, deixa claro o eixo central do referido livro. Os diferentes artigos de diversos autores tratam do que ele chama de “renovação da história política”. Rémond começa esboçando uma “história da história política” e ressalta as principais críticas feitas a essa “modalidade” principalmente pela chamada Escola dos Annales:

Ela só tinha olhos para os acidentes e as circunstâncias mais superficiais: esgotando-se na análise das crises ministeriais e privilegiando as rupturas de continuidade, era a própria imagem e o exemplo perfeito da história dita factual (...) que fica na superfície das coisas e esquece de vincular os acontecimentos ás suas causas mais profundas. (2003: p. 16-17).

Ao privilegiar essa curta duração a história política desconhecia “as forças profundas e as causas ocultas” (IDEM: 18) que condicionariam o curso das coisas. No “evento” ganhavam relevo as grandes personalidades em detrimento das “massas”, do “homem comum”. Mais a frente Rémond fala de como a história política caiu em descrédito e perdeu sua hegemonia para a história econômica e social. Porém, ressalta que a partir da década de 1960 se deu seu retorno “com força total”, e isso pode ser visto tanto através do aumento no número de trabalhos consagrados a sua temática, como também pelo retorno do “político” aos currículos escolares[1]. Mais importante ainda é que esse retorno da história política veio acompanhado de uma renovação, que trouxe ao campo novos temas, periodizações, fontes e abordagens.
A história da guerra partilhou das mesmas críticas feitas à história política. Acusada de restrita apenas a curta duração dos conflitos, criticada pelo enfoque nos “grandes” chefes militares e heróis, e por dedicar suas linhas a simples descrição de batalhas, ela ficou muito tempo “desacreditada” tal qual a chamada “história tradicional” [2].  Jean-Pierre Azéma ressente-se de como sua geração teve a “cabeça cheia de todo um anuário de generais e de batalhas”. (IDEM: 402)
Em “Os voluntários da pátria na guerra do Paraguai: o comando de Osório”, nota-se claramente essa forma tradicional de abordagem da guerra:

Na operação, montada com mais recursos, tomaram parte, conforme o Generalíssimo Mitre, cerca de18 mil homens, entre brasileiros e argentinos. Ele próprio dirigiu a ação e levou deTuiuti para o acampamento de Curuzu o reforço de 32 batalhões (...). De Tuiuti também o marechal Polídoro, comandante do 1º Corpo de Exército, mandou 5 batalhões de infantaria, grupados em uma brigada, a que denominou Brigada Auxiliar, sob o comando do Tenente-Coronel Antônio da Silva Paranhos, um dos grandes infantes daquela época.
(DUARTE: 1983: p. 15).

No referido livro assiste-se á um verdadeiro desfile dos generais encarregados de levar a bom termo a guerra contra o Paraguai. O autor não procura fazer reflexão alguma sobre as motivações econômicas da guerra, sobre o moral da tropa ou alguma questão relativa ao “soldado raso”. Dedica-se exclusivamente em descrever pormenorizadamente as batalhas e a enfatizar o “gênio militar” dos oficiais brasileiros.
Porém, juntamente com a história política, a história da guerra voltou do “ostracismo” no qual se encontrava também “renovada” e são as especificidades de tal renovação que serão abordadas nas linhas que se seguem.
Jean-Pierre Azéma, em seu artigo anteriormente citado, defende que se por um lado a guerra não deve ser estudada encarcerada em si mesma, por outro também não pode ser colocada como mero reflexo de outra “estrutura”, como por exemplo, a econômica. As guerras, pelas grandes modificações que provocam (tecnológicas, políticas...) tem papel protagonista na sociedade e assim devem ser abordadas. Dessa forma, o autor defende uma “leitura política” da guerra, uma vez que a “ida aos extremos” não está ligada á uma “gramática própria”, mas sim a fins políticos.
Um bom exemplo de como uma leitura da guerra apenas por sua “própria gramática” pode prejudicar o entendimento do historiador, é encontrado na Segunda Guerra Mundial. Em 1941 a Wehrmath, para desespero de vários oficiais alemães, invade a União Soviética. Do ponto de vista simplesmente militar isso parece um absurdo, uma vez que foi aberta uma gigantesca frente de batalha e a experiência de uma guerra com duas frentes, no conflito de 1914, já havia demonstrado aos alemães os perigos dessa empreitada.
Porém, ao observar o episódio com uma perspectiva política, a irracionalidade logo desaparece. Na década de 1930 a animosidade das potencias ocidentais (principalmente a Inglaterra) em relação aos soviéticos era grande e uma cruzada antibolchevique constituía uma possibilidade nada remota, pelo contrário. Hitler, procedendo a uma leitura política da situação, calculou que um ataque a União Soviética poderia dissuadir Inglaterra e França de continuarem no conflito, uma vez que o temor dessas nações ao espectro comunista seria maior que o receio da expansão de uma Alemanha nazista. Apesar dos acontecimentos a posteriori terem mostrado o erro de calculo de Hitler, sua análise fazia bastante sentido no contexto geopolítico da época.

A Guerra Civil Espanhola apresentava, desse modo, um dilema para Stálin. Ele não poderia consentir na destruição da Frente Popular Espanhola e na subseqüente emergência de outro Estado fascista que representaria, além do mais, o isolamento de seu aliado, a França. No entanto, uma vitória republicana que levasse a uma revolução social na Espanha poderia incentivar os Aliados a se unirem á Alemanha contra a União Soviética. (SALVADÓ: 2008. p. 113).

Ao historiador das guerras contemporâneas que pretende uma “abordagem renovada”, cabe atentar para algo salientado por Azéma. A Revolução Francesa trouxe duas mudanças decisivas para as guerras: “a democratização”, com a convocação em massa e o “homem comum” como “carne de canhão”; e a chamada guerra ideológica, ou seja, a necessidade de justificar a “ida aos extremos” perante as massas que irão morrer nos campos de batalha e as que vão “financiar” com seu labor o conflito.
As guerras atuais[3] não dependem mais apenas do “humor” de um restrito círculo governamental-militar, ao contrário. A necessidade de justificá-las perante as massas é cada vez maior, uma vez que elas é que constituirão o “grosso” das tropas e colocarão em movimento a economia de guerra. O moral tanto da tropa quanto da “retaguarda” é condição sine qua non para a vitória. Um exemplo representativo disso é o papel que a opinião pública norte-americana teve na retirada das tropas de seu país do Vietnã em 1973.
Nesse sentido, um material que propicia uma abordagem diferenciada da guerra são os discursos justificando-a. A problemática da guerra justa/ injusta é bastante interessante e está em relação estreita com o advento do “povo massa”. Assim, ao analisar tal material o historiador se depara com verdadeiros malabarismos usados por governantes para justificarem a “ida aos extremos”.

DECLARAÇÃO DE HITLER EM 1º DE SETEMBRO DE 1939.

“Pela primeira vez, esta noite, tropas regulares polonesas abriram fogo contra o território do Reich. A partir das 5.45 hs responderemos ao fogo e, de agora em diante, às bombas replicaremos com bombas”. (CODEX: 1966, p. 13)

Apesar de toda política externa alemã ser claramente expansionista após 1933, Hitler mostra nesse discurso sua preocupação em justificar a invasão do território polonês como uma medida defensiva, ou seja, a legitimidade para as ações alemãs estaria no fato de terem sido agredidos primeiro. O mais impressionante, contudo, é uma versão bastante aceita sobre esses ocorridos dos idos de 1939:

Eram 8 ou 10 soldados. À frente um oficial. Os uniformes, poloneses...Irromperam bruscamente na sala a se deslocarem em silêncio. O oficial levantou o braço. Os soldados prepararam as armas automáticas. Com um gesto brusco o braço desceu. Numa ensurdecedora descarga estremeceu as paredes do pequeno edifício.
A seguir, com a mesma rapidez com que chegaram, os soldados atacantes se retiraram. Mais adiante, porem, se movimentaram com menos pressa, de tal modo que os habitantes que acorreram às janelas de suas casas puderam observar claramente seus uniformes poloneses e escutaram as suas vozes gritando em idioma polonês. Estranha demora aquela. Todo o povoado foi testemunha, dessa maneira, do criminoso ataque que os soldados poloneses efetuaram contra aquele pacífico posto alemão.
Mas nem tudo havia terminado ainda. No interior da estação transmissora, manipulando rapidamente os aparelhos, um soldado polonês leu ante o microfone uma declaração em que dizia haver chegado o momento da guerra entre a Polônia  e a Alemanha.
O grupo de soldados poloneses retirou-se para o território da Polônia e, após percorrerem um breve caminho, voltou sobre seus passos, reingressando em território alemão. O oficial “polonês” que os comandava era Alfred Neujoks, oficial alemão da SS. Os soldados “poloneses” que o seguiram na ação eram homens pertencentes a sua própria seção da SS.
 (IDEM: p. 12)

Ao analisar tais discursos é preciso também estar atento às diferenças entre aqueles destinados ao público interno e a comunidade internacional. Tanto a invasão da Polônia quanto a da União Soviética foi justificada em termos defensivos, ou seja, como uma reação a agressão ou provocação anterior. Porém, perante a opinião pública alemã os nazistas sempre defenderam o “direito natural” dos alemães conquistarem seu “espaço vital”. Assim, a invasão dos países eslavos e o massacre da população local eram justificados pela ideologia nazista, impregnada da dicotomia entre raça superior/ inferior. Possivelmente havia um terceiro nível de discurso destinado ás SS que estavam encarregadas da “solução final” para a questão judaica. Um estudo desse material seria bastante esclarecedor no sentido de entender como era o trabalho ideológico dos nazistas com aqueles encarregados diretamente do extermínio de outros seres humanos e que por conseqüência, tinham que ser “embrutecidos” para a boa execução do “trabalho”. Cabe, portanto, atentar para o que disse um oficial SS na Ucrânia:

Somos uma raça superior e devemos governar com dureza, mas com justiça (...) Arrancarei deste país, entretanto, tudo que puder. Não vim para espalhar bem-aventuranças (...) A população deve trabalhar, trabalhar sempre (...) Não viemos para distribuir o maná. Viemos para criar as bases da vitória.
Somos uma raça superior que precisa lembrar que o mais humilde operário alemão é, racial e biologicamente, mais valioso que a população daqui. (IDEM: 1966, p. 16)

Enfim, a problemática entre guerra justa/ injusta está ainda bastante presente em nossos dias. Se em certa época a “cruz” foi a justificativa para se invadir e pilhar tantos territórios, a “democracia” hoje muitas vezes serve ao mesmo papel.  O que vale enfatizar, contudo, é que abordagens desse tipo lançam novas perspectivas sobre a guerra, produzindo um discurso histórico que rompe com o eventual, o factual e com os “grandes heróis”.
Um outro aspecto sobre o qual vale a pena algumas considerações é o que diz respeito ás fontes para a história da guerra. Ao invés de se deter nas ordens do dia, nas diretivas de comandantes, enfim, nos documentos oficiais, o historiador pode explorar um outro tipo de material e lançar luz sobre aspectos normalmente negligenciados nos relatos de guerra. Jean-Pierre Azéma cita alguns estudos baseados nas correspondências dos soldados. Esse tipo de fonte muitas vezes contradiz os documentos oficiais, pois neles muitas vezes transparecem as dúvidas, apreensões e medos dos soldados em relação a guerra.
O que diria um “pracinha brasileiro” na Itália á seus familiares? Qual sua percepção sobre o fato de estar arriscando sua vida em uma terra longínqua, matando pessoas que mal conhece e vendo seus companheiros morrerem a todo o momento? Teria ele a consciência de estar lutando pela democracia? Aliás, a idéia de democracia lhe faria algum sentido?
Hobsbawm, em um artigo de seu livro Sobre História, fala de uma conferência internacional de historiadores ocorrida em 1994 que foi dedicada a memória dos massacres alemães na Segunda Guerra Mundial. “Os historiadores orais (...) estavam chocados por descobrirem que os habitantes (...) não culpavam tanto os alemães pelos massacres quanto os jovens locais que se haviam juntado aos guerrilheiros e, segundo achavam, haviam irresponsavelmente levado seus lares ao desastre”. (2002: p. 281).
Esse constitui um bom exemplo de como o historiador da guerra, ao não se restringir as fontes tradicionais, pode se surpreender com algumas constatações que parecem fugir ao que previamente imaginava ou que fazia parte do senso comum. Assim, a história da guerra atualmente ganha espaço e bastante renovada com novas abordagens, periodizações, fontes, enfim, novas fronteiras a serem desbravadas.


[1] Cabe ressaltar que René Rémond faz essas reflexões levando em conta predominantemente a “realidade francesa”.
[2] Cabe aqui ressaltar que apesar de “desacreditada” no meio acadêmico, muitas vezes a demanda”popular” por esses “relatos tradicionais” permaneceu grande.
[3] Contemporâneas.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

CASTRO ALVES: O POETA E SUA ÉPOCA

Em 14 de Março de 1847 a Bahia vê o nascimento daquele que seria um dos maiores poetas brasileiros. Antônio de Castro Alves nasceu na “Fazenda Cabaceiras”, hoje município de Muritiba, sertão da Bahia. “Cabaceiras, perto do porto de Papa–gente, no rio Paraguaçu. A vegetação rasteira é salteada de uricuris e cactos mandacaru, além de umbus e cajueiros, estendidos pela campina, até as matas fechadas das vertentes da serra do Aporá...”[1] . Esse ambiente rural que envolve os primeiros anos do poeta baiano tem, posteriormente, profunda influência em sua poesia e visão de mundo. São inúmeros os versos em que Castro Alves fala do sertanejo, do homem comum, da vida simples em meio a natureza...Apesar de passar apenas os primeiros anos de sua vida em Cabaceiras, posteriormente, quando a família muda-se para São Félix, nas margens do rio Paraguaçu, as histórias contadas por sua ama Leopoldina a respeito do sertão povoam sua mente, permitindo que permaneça no imaginário do poeta todo esse carinho que tem por sua região natal.


                                              “Passa, ó vento das campinas,
                                               Leva a canção do tropeiro.
                                               Meu coração está deserto,
                                               Está deserto o mundo inteiro.
                                               Quem viu minha senhora
                                               Dona do meu coração?

                                               Chora, chora, na viola,
                                               Violeiro do sertão.”[2]

No poeta baiano coexiste o sertanejo, com seu profundo respeito pelo campo e pela rusticidade, e ao mesmo tempo o jovem urbano, o estudante inserido nos debates mais acalorados e polêmicos daquela sociedade.
O Brasil de Castro Alves é o Brasil de meados do XIX, um país onde profundas transformações estão em curso. É justamente de 1850 a Lei que proíbe definitivamente o tráfico de escravos da África para ese lado do Atlântico. Com essa medida e a posterior repressão aos traficantes, ficará cada vez mais inviável – isso não de maneira imediata, mas sim gradualmente - a manutenção desse modelo de trabalho, uma vez que seus custos serão contraproducentes.
 É justamente no ano do nascimento do poeta que o senador Nicolau Vergueiro, grande proprietário em São Paulo, colocará em sua Fazenda Ibicaba, entre alemães, belgas, suíços e portugueses, 177 famílias para o trabalho “livre”. Vinham esses imigrantes com a promessa de uma vida melhor, e através de um contrato de parceria constituíram uma forma alternativa ao braço escravo.
Sabemos bem que esse sistema na maioria das vezes não proporcionava ao imigrante a almejada prosperidade econômica, uma vez que o “parceiro” brasileiro, tão acostumado ao trato com o cativo, criava sérios obstáculos a qualquer pretensão de autonomia por parte do colono. É também por volta de 1850 que o imigrante passa a ser utilizado como mão-de-obra assalariada.
O que queremos mostrar com isso é que o Brasil do nascimento de Castro Alves é um país onde coexistem formas econômicas, políticas e sociais, que mais tardes se mostrarão excludentes e contraditórias. Como nos diz Richard Granhan, “O Brasil começa a aproximar-se do mundo moderno durante o período de 1850 até a Primeira Guerra Mundial” [3].
 É por essa época que a vida nas cidades ganha maior importância em razão do aparecimento de novas iniciativas comerciais, financeiras e industriais. “O país conhecerá, pela primeira vez, um desses períodos financeiros áureos de grande movimento de negócios. Novas iniciativas em empresas comerciais, financeiras e industriais se sucedem ininterruptamente; todos os índices de atividade sobem de um salto.” [4]  
Em 1854 o Dr. José Alves, sua esposa Clélia Brasília, juntamente com toda família mudam-se para a capital da província, onde o pai do poeta inicia na sua carreira de professor de cirurgia, primeiramente como substituto, mas rapidamente é investido pelo governo imperial no cargo de professor.
Conforme os vários biógrafos do poeta, e entre eles Afrânio Peixoto, esses tempos na capital da Bahia tiveram grande influência na formação de Castro Alves, uma vez que é por esses anos que o então menino de onze anos inicia seus estudos no Ginásio Baiano. Fundado pelo Dr. Abílio César Borges, posteriormente Barão de Macaúbas, o poeta e seu irmão José Antônio iniciam-se sob um novo método de ensino, baseado na simultaneidade de várias matérias, onde os alunos conheciam as várias disciplinas ao mesmo tempo aprofundando-se em cada uma delas no ano seguinte. Mas os métodos do Dr. Abílio não se resumiam a isso: “...O velho recurso do castigo fora abolido. E mais, o avançado educador estimulava os meninos no gosto das letras, promovendo festas – os outeiros – onde eram distribuídos prêmios aos melhores trabalhos da garotada...Naquela década de 50 o seu colégio abrigava uma plêiade de meninos que iriam se tornar famosos: Antônio de Castro Alves e Antônio Alves Carvalhal, poetas; Rui Barbosa, Sátiro Dias e Artur César Rios, parlamentares; Eduardo Ramos e Francisco Vicente Viana, escritores.”[5]
É no ginásio baiano que Castro Alves tem contato com clássicos da literatura nacional e mundial. É por esses tempos que conhece Lamartine, Vigny, Chateaubriand...e o grande escritor que teve profunda influência em seu espírito: Victor Hugo. Lê Camões, Bocage, Byron, Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo...Enfim, a literatura imprimi-lhe marcas que o acompanharão até o final dos seus vinte e quatro anos de vida, e a contribuição dos métodos do Dr. Abílio são inegáveis, o próprio poeta as reconhece: 

                                               “Pois em ti, sublime dia,
                                               Do alto dos céus baixou
                                               O anjo, que á mocidade
                                               Dos rigores libertou.”   

Esses são versos ainda imaturos do ponto de vista literário, são frutos da inspiração de um garoto de apenas treze anos de idade. Contudo, mostram bem a admiração que o garoto Castro Alves tem pelo diretor do seu colégio.
Falamos até agora de algumas influências literárias sobre o poeta baiano, contudo, a Bahia em si tem uma grande contribuição em seu pensamento. Nessas terras, por volta de 1821 e 1822, a oposição e até mesmo ódio entre os reinóis e brasileiros, mostra talvez sua face mais cruenta. Célebres batalhas pela independência e expulsão dos lusitanos, como a batalha de Pirajá, Cabrito...entre outras, marcam profundamente o espírito de Castro Alves, imprimindo-lhe sua marca nacionalista.
Neto de major que lutou pela independência do Brasil, filho de uma terra bastante orgulhosa de seu feito militar na expulsão dos portugueses...O Dous de Julho é para ele a própria expressão da liberdade, uma vez que é nessa data que a Bahia vence finalmente a resistência lusitana, e essa última está estreitamente ligada, no imaginário do poeta, a idéia da opressão, do despotismo...

                                               Não! Não eram dous povos, que abalavam
                                               N’aquelle instante o solo ensanguentado...
                                               Era o porvir – em frente ao passado,
                                               A liberdade – em frente á escravidão
                                               Era a lucta das águias – e do abutre,
                                               A revolta do pulso – contra os ferros,
                                               O pugilato da rasão – com os erros,
                                               O duelo da treva – e do clarão!...”[6]

Nacionalismo e liberdade. São essas duas grandes influências que a ex. Capitania de Francisco Pereira Coutinho imprimem em Castro Alves.
No dia 25 de Janeiro de 1862 o poeta e seu irmão José Antônio embarcam no vapor Oiapoque tendo como destino a cidade do Recife. Iam eles fazer os exames preparatórios para ingressar na faculdade de Direito.
“Pernambuco foi o maior foco de liberalismo, de aspirações de autonomia e de tradição guerreira em todo Brasil”[7]
Se, como dissemos , está umbilicalmente ligado à Bahia o nacionalismo de Antônio de Castro Alves, o mesmo podemos dizer de seu republicanismo em relação a Pernambuco, mais especificamente ao Recife.
 Boa parte das poesias que mostraremos mais adiante para demonstrar o caráter de seu ideal republicano foram escritas durante sua estadia em Recife. O século, Agosto de 1865; Ao Dous de Julho, Setembro de 1866; Pedro Ivo, Maio de 1865; As Duas Ilhas, também de 1865; A visão dos Mortos, Dezembro de 1865...Aliás, parte considerável das poesias reunidas postumamente em seu livro Os Escravos também foram escritas em terras Pernambucanas. O contato com o ambiente acadêmico e os ares históricos  daquela região impregnam a alma de Castro Alves.
Pernambuco é região com forte tradição na luta por autonomia. Em 1824 quando D. Pedro I dissolve a câmara,a província arrasta, sob sua liderança, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe na união republicana denominada Confederação do Equador.
Já em 1817 a reação ao domínio português e a contestação ao absolutismo carrega Pernambuco, mais uma vez espalhando a sedição pelas demais províncias nordestinas, aos campos de batalha. Os “revolucionários” pretendiam a emancipação política e o estabelecimento da forma republicana de governo, para isso organizaram um governo provisório composto por diferentes categorias sociais e econômicas.
A reação da monarquia não tardou, vários líderes foram executados ou presos e a ordem colonial restabelecida. Porém, nada mais significativo e explicitamente marcante no imaginário de Castro Alves que a Revolução Praieira de 1848. Tanto é assim que a um de seus líderes dedicou um de seus mais belos poemas: Pedro Ivo.


                                   “Que importa se o tum’lo ninguém lhe conhece?
                                    Nem tem epitaphio, nem leito, nem cruz?...
                                   Seu tumulo é o peito do vasto universo,
                                   Do espaço – por cupola – as conchas azúes!...”[8]

Nesse poema Castro Alves ao mesmo tempo que mostra sua predileção pela república destila toda sua eloquência contra a escravidão e o estado de coisas que ela criava. Nesses versos o poeta mostra, como falaremos mais adiante, a simbiose entre seu republicanismo e abolicionismo, pois para ele a escravidão forja diversos vícios na sociedade.
A Praieira, considerando a heterogeneidade nela contida, mostrou também sua face mais radical, representada pelo republicano Antônio Borges da Fonseca, crítico veemente do imperador e por que não pelo gênio estrategista do “Capitão da Praia” Pedro Ivo Veloso.
        “Pela carta escrita em 16 de Janeiro de 1864 a Marcolino de Moura, condiscípulo e amigo, alguma cousa sabemos da vida nova de Castro Alves: - Minha vida passo-a aqui numa rêde olhando o telhado, lendo pouco, fumando muito.”[9] Se a nova vida em terras pernambucanas não era em nada atraente para José Antônio, que cada vez mostrava-se mais sombrio, depressivo e alheio realidade, Castro Alves também compartilha o tédio de seu irmão mais velho.
Em princípio  moram em um convento, o São Francisco, contudo logo mudam-se para uma casa as margens do rio Capibaribe onde conhecem o amigo Luis Cornélio, com quem o poeta costumava passear naquelas tardes melancólicas pelas margens do rio. É em razão desse marasmo e desinteresse pela carreira jurídica que Castro Alves será reprovado por duas vezes nos exames preparatórios para o ingresso no curso de Direito. Somente em Março de 1864 o poeta, ainda extremamente abalado pelo suicídio de seu irmão no mês anterior, consegue ingressar na Faculdade de Direito do Recife. Um ano antes, porém, publica os seus primeiros versos abolicionistas: A Canção do Africano.
           É também nessa época que a Companhia de teatro do conhecido ator Duarte Coelho apresenta-se no teatro Santa Isabel, e no elenco estava aquela que talvez tenha sido o grande amor da vida de Castro Alves: A atriz portuguesa Eugênia Infante da Câmara.
No ano de 1864, apesar de já devidamente matriculado e freqüentando o curso, o poeta é acometido por uma moléstia e embarca precipitadamente para Bahia, perdendo assim o ano. “Mocidade e Morte” ou como era o título original, “O Tísico”, data dessa época, e mostra bem como a idéia da morte, um lampejo do sangue expelido pelos pulmões, atormenta-o:

                                   “Oh, eu quero viver, beber perfumes
                                   Na flor silvestre, que embalsama os ares;
                                   Ver minh’alma adejar pelo infinito,
                                    Qual branca vela n’amplidão dos mares.
                                   No seio da mulher há tanto aroma...
                                   Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
-          Arabe errante, vou dormir á tarde
A’ sombra fresca da palmeira erguida

Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o somno sob a lágea fria.”


Em Março de 1865, já restabelecido da moléstia, embarca novamente Castro Alves no Oiapoque para dar prosseguimento ao curso. É durante a viagem que conhece aquele que seria um de seus poetas favoritos, o já famoso Nicolau Fagundes Varela. O ano de 65 é marcado pelo desinteresse em relação ao curso jurídico e pelo despontar de seu gênio poético. Pouco assíduo as aulas, morando no bairro Santo Amaro com a “misteriosa Idalina”, da qual pouco se sabe, o poeta mostra toda sua virulência contra a escravidão. É nessa época que escreve Pedro Ivo, O Bandido Negro, A cruz da estrada...entre outros.
Em Janeiro de 1866 morre na Bahia seu pai, o Dr. Antônio José Alves, mas após breve estadia em sua terra natal o jovem de dezenove anos volta ao Recife para o segundo ano de direito.
 1866 marca, além da continuidade de sua crítica ao escravismo, que tem um de seus pontos altos na fundação de uma sociedade abolicionista, onde entre outros membros figurava o futuro grande intelectual brasileiro Rui Barbosa...Marca também o início de seu romance com Eugênia Câmara. Após as defesas acaloradas que o poeta faz da atriz portuguesa no teatro Santa Isabel, após versos e mais versos de amor...Em fins de Setembro Eugênia vai morar com o poeta numa casinha entre Recife e Tejipió.
Em meio a essa tranqüilidade e com a ajuda de Eugênia Castro Alves trabalha naquela que seria sua grande peça de teatro. É durante esse “retiro” que o poeta da luz ao “Gonzaga”, um drama que teria por pano de fundo a Inconfidência Mineira mas que tinha como foco principal a denuncia da escravidão. Eugênia seria a Marília.
No Recife não conseguiu encenar sua peça, abandona então o terceiro ano do curso e a      de Junho de 1867 parte para a Bahia com Eugênia. Ficaria em sua terra natal menos de um ano, mas tempo suficiente para ver O Gonzaga representado pela primeira vez em pleno 7 de Setembro. Em sua estadia na Bahia volta a famosa Boa Vista, casarão onde residiu com seus pais e irmãos durante sua infância, onde também morreu sua mãe no ano de 1859 e que dará nome a um de seus mais melancólicos e saudosistas poemas:


                                   “Era uma tarde triste, mas límpida e suave...
                                   Eu – pallido poeta – seguia triste e grave
                                   A estrada, que conduz ao campo solitário
                                   Como um filho, que volta ao paternal sacrário,...”[10]

Em princípios de 1868 a idéia de ver seu drama encenado na capital do império leva o poeta a “formosa terra de Guanabara”.[11] Apresentado por carta ao romancista José de Alencar, a quem o poeta dedica um volume de Espumas Flutuantes que por felicidade podemos agora usar seu fac-símile, é recomendado por esse a Machado de Assis, que pelo que conta seus biógrafos ficou impressionado com o gênio do poeta baiano: “Achei um poeta original...A musa do Sr. Castro Alves tem feição própria.”[12].
Em 1868 o Brasil ainda está em guerra com a república paraguaia e no dia 19 de Fevereiro a esquadra brasileira rompe as defesas que trancavam as passagens de Humaitá. Na corte o entusiasmo patriótico é grande e Castro Alves recita o poema “Pesadelo de Humaitá”, uma das poucas referências que faz a essa guerra. Nesses versos o poeta exalta o heroísmo brasileiro, participando do entusiasmo geral, contudo, a margem do poema coloca uma observação: “não se publica”. Apesar de ter se alistado no batalhão de voluntários em seus tempos de Recife, e de versos exaltando os soldados brasileiros, como já dissemos, não sabemos bem a posição do poeta frente a essa guerra hoje extremamente impopular. O que podemos dizer é que Castro Alves aparentemente compartilhou as alegrias de seus contemporâneos pela vitória nacional.
Contudo seu objetivo principal fracassou, uma vez que quem domina o teatro carioca por esses tempos é a Companhia do Sr. Furtado Coelho, ex-amante de Eugênia Câmara e pai de sua filha Emilia, e a mesma companhia recusa encenar o espetáculo  Gonzaga.
Parte então, a 13 de Maio do mesmo ano para São Paulo, onde além de encenar sua peça poderia dar prosseguimento aos estudos jurídicos na faculdade do Largo São Francisco.
 A cidade de São Paulo por esses tempos  já começa a despontar sob a prosperidade do café que desenvolve-se na província, tornando-se gradualmente a base de sua economia e urbanização, contudo, não é ainda a grande capital, ao contrário, carrega muito ainda de seu antigo provincianismo. Mistura os velhos sobrados com o primeiros palacetes dos senhores do café. É a São Paulo das primeiras estradas de ferro, do início da imigração como substituta do braço escravo, dos grandes cafezais...E da Faculdade do Largo São Francisco, que por esses tempos já é conhecida como “burgo dos estudantes”[13] .
Para sentirmo-nos um pouco mais perto da São Paulo de meados do XIX o próprio poeta pode nos ajudar. Em carta datada de 8 de Abril a Augusto Guimarães diz: “Eis-me em S. Paulo, na terra de Azevedo, na bela cidade das névoas e das mantilhas...Nós os filhos do norte sonhamos S. Paulo o oásis da liberdade e da poesia plantadoem plenas campinas do Ipiranga...Sim! porque aqui não há senão frio, mas frio da Sibéria; cinismo, mas cinismo da Alemanha; casas, mas casas te Tebas; ruas, mas ruas de Cartago...casas que parecem feitas antes do mundo, tanto são pretas; ruas que parecem feitas depois do mundo – tanto são desertas...Entretanto, inclino-me a preferir S. Paulo ao Recife”[14].
Em São Paulo Castro Alves e Eugênia vão morar no Hotel Itália e o poeta participa ativamente de encontros literários, como aquele organizado no Arquivo Jurídico e Literário para apresenta-lo a comunidade acadêmica. Poucas aulas e agitada vida social, porém é nessa época de grande reconhecimento de seu gênio literário que Eugênia, irritada com os ciúmes do poeta, coloca seus pertences na rua.
Entre Abril e Junho Castro Alves escreve aqueles que seriam os versos de sua consagração como poeta abolicionista. Um, Vozes D’africa, o poeta fala das desgraças daquele continente, que erguendo sua voz aos céus pergunta a Deus a razão de tamanha maldição. Nessas estrofes mostra como a América está intimamente ligada a desgraça do continente negro:


                                   “ Hoje em meu sangue a América se nutre
                                   Condor – que transformara-se em abutre “[15]

Outro, sua obra-prima, O Navio Negreiro, onde pinta a maneira de Rugendas[16] a sorte daqueles negros transportados da África para o Brasil nos conhecidos “tumbeiros”. Recita-o a 7 de Setembro no Ginásio Literário sob os olhares das senhoras e de poderosos fazendeiros:

                                   “Era um sonho dantesco...o tombadilho
                                   Que das luzernas avermelha o brilho,
                                               Em sangue a se banhar.
                                   Tinir de ferros...estalar de açoite...
                                   Legiões de homens negros como a noite,
                                               Horrendos a dançar...”[17]

É nessa época que o poeta vai morar na republica dos baianos juntamente com aquele que seria uma das personalidades mais destacada do início da republica. Rui Barbosa. Sua preocupação agora era representar O Gonzaga em São Paulo, uma vez que até já havia conseguido patrocínio de um certo Barão de Iguape. Após conseguir que o ator Joaquim Augusto Ribeiro de Souza contracenasse com sua Eugênia, finalmente vê o drama representada a 20 de Outubro no Teatro São José. O sucesso é inegável, contudo a distância entre o poeta e Eugênia é cada vez maior.
A 11 de Novembro de 1868 o poeta sai para caçar pelos lados do Brás, por infelicidade e descuido, um tiro no próprio calcanhar dará início a um longo período de efermidade. O ferimento, agravado ainda pela tuberculose prende Castro Alves a cama por vários meses...O frio e a garoa de São Paulo também em nada contribuem para seu restabelecimento...Volta para o Rio de Janeiro, onde tem seu pé amputado em começos de Junho, e conforme todos seus biógrafos, o seu estado pulmonar não permitiria a anestesia por clorofôrmio. No Rio ainda reencontra-se com Eugênia, contudo, a despedida era mesmo definitiva.
Aos 23 anos de idade, após conhecer homens como Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rodrigues Alves...Ser aluno de José Bonifácio...Deixa o poeta as “terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os enthusiasmos, o viço de todas as illusões, os meus vinte annos de seiva e mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro:...”[18]
Volta então o a sua terra Natal. Primeiro vai para o Curralinho, fazenda de seus parentes maternos, depois, já em setembro de 1870 volta a Salvador, onde escreve No Meeting du Comité du Pain, poema no qual lamenta a derrota francesa frente as tropas prussianas na guerra que travaram as duas nações naqueles anos. Nesses versos Castro Alves vê na derrota francesa a própria derrota das luzes, era a submissão daquela que foi o berço da revolução:

                                   “Ó França! Deste a luz que de teu ser jorrava1
                                   Ó França! Acolhe agora em recompensa...o pão.
                                   O Cristo no deserto os pães multiplicava,
                                   Faça agora o milagre, ó França, o coração! [19]

Suas lamentações não parecem levar em conta que quem governava os franceses na época  era Napoleão III, que de republicano nada tinha. Aliás, a maneira pela qual esse descendente de Bonaparte I chegou ao poder ficou celebrizada na obra de Karl Marx, O Dezoito Brumário de Luis Bonaparte: “ A 2 de Dezembro, a Revolução de Fevereiro é escamoteada pelo truque de um trapaceiro...” Contudo, o que Castro Alves tem em mente nesse momento é a “gloriosa França”, o berço da liberdade e a fonte de luz do mundo.
A partir daí o estado de saúde de Castro Alves declina dia a dia. O inverno, a tuberculose...Os males só eram amenizados pela convivência com a família e pela sua recente paixão pela professora de canto e piano de suas irmãs. “Das festas de 2 de julho ouviu apenas o eco distante, que lhe entrou pela janela aberta com os bafos da manhã...O Dr. Souto segredou, que não havia mais esperança de sobreviver áquela semana. Na quinta-feira, 5 de julho, circulou pela cidade a notícia de que Castro Alves agonizava.”[20]   
Na sexta-feira, 6 de Julho de 1871 morria na Bahia Antônio de Castro Alves, tendo ainda podido ver sua obra Espumas Flutuantes ser publicada. Em 1876 é publicada A Cachoeira de Paulo Afonso e sete anos mais tarde vários de seus poemas “abolicionistas” são publicados em Os Escravos.
Morria Castro Alves. A monarquia brasileira ainda sobreviveria mais dezoito anos e a escravidão negra mais dezessete. Não viu o poeta a concretização de seus sonhos. Mas o que importa, quando os sonhos são a matéria-prima do porvir ?


[1] Peixoto, Afrânio. Castro Alves – O poeta e o poema. Editora Brasiliana. 5º Edição. São Paulo.1976.
[2] ALVES, Castro. Canção do violeiro. Em: Os Escravos. Editora Martin Claret. P 73.
[3] GRANHAN, Richard. Grã Bretanha e o início da modernização no Brasil. Editora Brasiliense. 1973. P.31
[4] JUNIOR, Caio Prado. História Econômica do Brasil. Editora Brasiliense. 17º Edição. P. 154.
[5] SILVA, Francisco Pereira. ARINOS, Afonso de Mello Franco (supervisão). Castro Alves. Editora Três. Rio de Janeiro. 1974.
[6] ALVES, Castro. Ode ao Dous de Julho. Em: Espumas Flutuantes. Edição fac-similada da príncipe de 1870. P122
[7] HOLANDA, Sérgio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II. O Brasil Monárquico. 1 Processo de emancipação. Difel/ Difusão Editorial S.A. p. 187.
[8] ALVES, Castro. Pedro Ivo. Em: Espumas Flutuantes. Edição fac-similada da príncipe de 1870. P. 66
[9] CALMON, Pedro. A Vida de Castro Alves. Livraria José Olympio. Rio de Janeiro 1956. P. 78
[10] ALVES, Castro. A Boa Vista. Em: Espumas Flutuantes. Edição fac-similada da príncipe de 1870. P. 97
[11] Expressão contida no prologo de Espumas Flutuantes.
[12] Carta de Machado de Assis dirigida a José de Alencar no Correio Mercanti. Em: CALMON, Pedro.
A Vida de Castro Alves. Livraria José Olympio. Rio de Janeiro 1956. P. 189

[13] Em: PESSOA, Reynaldo Xavier Carneiro. O Ideal Republicano e seu papel histórico no segundo reinado:1870 – 1889. Coleção Monografias. nº 06.Edições Arquivo do Estado de São Paulo. 1983. P. 67.
[14] Esse trecho da carta de Castro Alves está no livro de Pedro Calmon que já citamos anteriormente. P. 200
[15] ALVES, Castro. Vozes D’Africa. Em: Os Escravos. Editora Martin Claret. P. 112
[16] Johann Moritz Rugendas, pintor alemão nascido em 1802 na cidade de Ausburg, viajou pelo Brasil do Primeiro Reinado onde retratou muito da vida cotidiana de nossa sociedade. Chamam a atenção suas obras referentes a aspectos da escravidão brasileira, como seus famosos quadros retratando o desembarque dos negros e o interior de um “tumbeiro”.
[17] O Navio Negreiro. Em: Os Escravos. Editora Martin Claret. P. 98.
[18] ALVES, Castro. Prologo  do livro Espumas Flutuantes.
[19] ALVES, Castro. No Meeting du Comité du Pain. Em: Castro Alves: Os mais lindos poemas. Obras imortais da nossa literatura. Editora Três. P. 181
[20] CALMON, Pedro. A Vida de Castro Alves. Livraria José Olympio. Rio de Janeiro 1956. P. 318