domingo, 27 de novembro de 2011

A ÁRVORE DA VIDA


 
Árvore da Vida é uma carta de amor à humanidade, ao planeta Terra e uma constatação de nossa infinita incapacidade de compreensão de nossa existência. Por mais de duas horas, Terrence Malick nos leva a um passeio pela história do planeta, a...o mesmo tempo em que discute nossa pretensa finitude e as sempre complicadas e tensas relações entre esses seres que cismam em complicar suas vidas.
É difícil descrever com propriedade o que é Arvore da Vida. Podemos dizer, no entanto, que Malick é brutalmente pretensioso quando fala sobre a humanidade. Que o diretor a partir do microcosmo de uma típica família americana expõe tudo o que sente pelo ser humano e suas reações a seus irmãos e ao planeta. Que no meio de seu filme, Malick coloca em quadro uma preciosa e inesquecível versão para a origem do universo e da criação da terra. E que em cada fotograma de seu novo filme Terrence Malick faz uma obra prima.
Descrever a mais completa perfeição de imagens, tons e ideias em película é um trabalho árduo. Desde o inacreditável uso do som, que ecoa pela sala nos envolvendo em um casulo sonoro (sendo fundamental para a construção de algumas sequências do filme), passando pelas excelentes atuações de todo o elenco, culminando no desbunde visual que Malick apresenta. Não existem palavras para exemplificar as sensações. Tudo funciona além da perfeição, com uma fluidez que beira o inacreditável.
O diretor consegue a proeza de se comunicar diretamente com nossas emoções, já que cada um de nós de uma forma ou de outra, já esteve no papel de um dos O'Brien.
Malick é sutil ao ir e voltar no tempo, apresentando de forma pretensamente desordenada os fatos e os efeitos de pequenos eventos, e grandes traumas que marcam a vida.
As comparações a 2001 começam ai, Kubrick assim como Malick é um humanista. Embora seus filmes sejam todos de uma rigidez que beira (às vezes ultrapassa) o sadismo, Kubrick tinha fé no estado bruto do homem e o representava com vigor e força. Em 2001, sua intensa necessidade de respostas encontrou seu ápice, ao mostrar a historia da humanidade sem ter a menor intenção de premiar-nos com alguma mágica resposta tirada de um livro esotérico ou de autoajuda. Kubrick fez de 2001 seu testamento para as estrelas. Malick faz de Árvore da Vida a sua versão desse mesmo testamento. Ambos parecem apresentar suas visões pessoais sobre a mesma pergunta, e ambos não se sentem dignos de serem os responsáveis por apresentarem respostas para seus magnânimos questionamentos.
Malick é humilde ao admitir que não sabe as respostas para suas perguntas e ao fazer isso tem a exata noção de sua infinita pequenez diante da incomensurável pujança do universo. Os seguidos momentos de união entre átomos e elétrons, com o surgimento de nebulosas, o fogo que brota da cáustica terra virgem, os mares que rompem as pedras, a chuva que torrencialmente limpa e hidrata planícies destruídas, tudo representando o ato da criação. Malick faz uma das mais profundas declarações sobre fé que vi em muitos e muitos anos numa tela de cinema. Isso tudo sem apelar para os misticismos, os símbolos e o discurso religioso. Malick não fala de religião, fala de algo muito mais intenso, verdadeiro e real: fé.
Somente a mente de um gênio poderia unir dinossauros e um discurso abertamente sobre fé em uma mesma narrativa, sem soar exagerado. Pelo contrário, a união das duas forças parece - no filme de Malick - jamais ter precisado brigar, parecem velhos amantes que se encontraram e estão papeando em um café, tentando entender como puderam viver tanto tempo longe um do outro. Fé e ciência para Malick parecem uma coisa só. Misturar as mais precisas e cientificamente corretas pesquisas sobre a criação do universo e ainda assim defender abertamente uma força superior é uma tarefa praticamente impossível. Eu disse, praticamente, já que Malick prova ser possível, prazeroso e visceral.
A fotografia é assombrosa. Como a natureza, a fotografia é fluida, intempestiva e inesperada. Segue o fluxo de rio, o barulho de passos na grama, o som de uma profunda respiração. Entende que a natureza deve apontar a forma como deve ser vista, e a obedece de forma humilde e sincera.
A já inesquecível sequencia "espacial" é amplificada pela delicadeza e sensibilidade de cada acorde, em cada nova nota que rompe a tela, em cada novo tema que retrata a naturalidade cósmica inerente aos eventos retratados. É glorioso, magnífico.
Árvore da Vida é um filme complexo - isso só pra usar uma palavra popular. Te desafia a pensar não só no filme, mas principalmente no que ele discute. Te choca com a beleza estonteante de cada plano e com sua pretensão desmedida em se fazer ouvir em um momento do cinema em que poucos - muito poucos - têm alguma coisa dizer.
Talvez muitos leitores/espectadores se sintam ofendidos e profundamente frustrados, com o fato de Malick ter a petulância de não facilitar em nada o nosso "trabalho". Ele pode te ofender com sua plena falta de vontade de lhe premiar com respostas. Pode lhe enfurecer com a perspectiva de mais de duas horas de questionamentos metafísicos e espirituais e pode lhe fazer questionar a sanidade até mesmo do crítico mais empolgado e devotado.
Essa reação é perfeitamente normal e compreensível. É o desfio de Malick a humanidade: decifra-me ou devoro-te, tal qual uma esfinge encravada em nosso inconsciente.
Eu, de minha parte, jamais tentarei decifrá-lo, prefiro ser devorada em minha profunda ignorância, consumida por suas imagens, sons e ideias. Fazer parte do cosmo, digerida pelas estrelas e sublimada aos céus, onde quem sabe consiga responder se Malick tinha razão.
 
Por: Holy Randi

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A FÊMEA DO BONOBO


Com 98 % de carga genética partilhada com os humanos, os bonobos provavelmente são um de nossos “parentes” mais próximos na árvore evolutiva. A sociedade dos bonobos é centrada na fêmea e de acordo com pesquisadores, diante de uma possibilidade de conflito entre dois bandos as matriarcas de um e outro grupo esfregam as genitálias para selar a paz.
Como ainda estamos longe do dia em que Dilma Rousseff e Cristina Kirchner esfregarão suas genitálias para resolverem uma contenda internacional ou mesmo judeus e palestinos transformarão a Faixa de Gaza em uma homérica suruba pacifista, temos que conviver com a violência como uma das possibilidades para resolução de conflitos, sobretudo, quando todas as tentativas de diálogo foram frustradas pela intransigência de ao menos uma das partes.
Gostemos ou não, a violência e repressão são indissociáveis, ao menos até hoje, de nossas organizações sociais. Os romanos submetiam seus prisioneiros de guerra a condição de escravos para colocar a economia em movimento; os indianos até hoje convivem com os subprodutos da sociedade de castas, mantida também pela violência. O século XX assistiu carnificinas de proporções titânicas movidas pelo radicalismo ideológico.  Enfim, a violência não é monopólio de cristãos, comunistas, muçulmanos, capitalistas, “bushistas” ou “lulistas” e não faltam exemplos de como está emaranhada na História das sociedades humanas.
Porém, violência e repressão, tal qual Mefistófeles, assumem aspectos e graus diversos. Paulo Freire, em “A Pedagogia do Oprimido”, desenvolve os conceitos de “ser mais” e “ser menos”, que a princípio podem parecer românticos e vazios, mas que na verdade levam a importantes questionamentos. “Ser mais” estaria ligado ao desenvolvimento de toda potencialidade humana (especialmente as relacionadas ao conhecimento) e “ser menos” diz respeito aos entraves a esse desenvolvimento. A partir desse raciocínio, percebemos formas de violência bastante veladas, porém, não menos efetivas e odiosas para suas vítimas. O trabalhador constrangido a passar metade do seu dia a serviço de seu patrão pode estar sendo violentado, uma vez que é despojado das mínimas condições físicas e mentais para ter contato com a ciência, a arte, o “ócio criativo”, enfim, ele não pode “ser mais”, pois seu salário mal paga sua subsistência e seu tempo livre é usado para “descansar com o único fim de estar descansado para trabalhar no outro dia”. Inclusive a “educação” que lhe é ofertada serve mais para qualifica-lo como mão-de-obra do que qualquer outra coisa. Esse trabalhador é violentado sistematicamente pela extenuante jornada de trabalho a que é submetido e reprimido de desenvolver-se intelectualmente pela impossibilidade econômica.
Milhares de crianças já nascem condenadas a “ser menos”, uma vez que desde a tenra idade deixam de “ser crianças” para tornarem-se parte importante no sustento da família. Assim, enquanto uns poucos desfrutam de “escolinhas de futebol”, livros da série “Vaga-lume”, “das feiras de ciência da escola”, das “Barbies” e “Hello Kitty”, considerável parte de nossas crianças se transformarão em adultos mal alfabetizados aptos apenas a construírem a riqueza alheia. Isso também é violência.
Nossa legislação permite que pessoas desviem exorbitantes somas de recursos destinados a hospitais e escolas para suas casas na praia, e ainda assim continuem impunes. Isso também é violência. A violência econômica muitas vezes condena mais pessoas a miséria que granadas ou fuzis e apesar de aparentemente “mais limpa”, ela apenas tem sua carnificina encoberta por uma ideologia disseminada por instituições estatais, pelos meios de comunicação e pelo “sistema de educação” que patrocina.
Muitos pacifistas, inclusive os mais sinceros, não reconhecem essas formas veladas de violência, porém, soltam gritos de horror quando grupos organizados de setores oprimidos da população empregam certas formas de violência, as vezes as únicas disponíveis, para sacudir o jugo da violência e repressão a que são submetidos diariamente. É a violência da autodefesa, talvez uma das mais legítimas formas de violência. Por vezes, uma maioria se vê em condições tão desesperadoras de existência que precisa se levantar, sacudir o jugo e nesse processo, ou emprega formas de violência e repressão ou se vê massacrada. Em 1964, no Brasil, o “querer evitar derramamento de sangue” possibilitou a instalação do “moedor de carne” dos militares. Allende, se tivesse prendido ou reprimido uma meia dúzia a mais de golpistas, poderia ter evitado o banho de sangue da ditadura encabeçada por Pinochet.
A violência existe, gostemos dela ou não, inclusive é condição sine qua non para a existência do Estado. Enquanto não aprendermos a solucionar conflitos esfregando as genitálias, ao modo dos bonobos, ou pelo diálogo, como parece desejável, teremos que conviver com ela, tentando utiliza-la da forma mais racional e progressista para a maior parte da humanidade e apenas quando e na medida estrita das necessidades. Novos holocaustos, Gulags, massacres por motivações racistas, religiosas ou ideológicas, devem e podem ser evitados a todo custo. Porém, o pacifismo, seja o cínico ou sincero, que não enxerga a violência econômica e social e nega o direito à rebelião ao oprimido, é tão opressor quanto o mais temido dos carcereiros.
O pensamento dialético permite compreendermos as coisas de forma não absoluta e sim em sua inegável condição histórica. O egoísmo, em si, não é bom ou ruim, podendo assumir um caráter progressista ou não em determinadas condições. A mesma ciência que proporcionou a penicilina possibilitou os atos terroristas de Hiroshima e Nagazaki. O medo que paralisa também nos mantém vivos e a coragem pode estar a um passo da insanidade. O mesmo acontece com a violência.

Saimov